7 O Tubo de Ensaio da Indústria Cultural

Versão 0.0.1 - 09/11/2024126

7.1 Entubando conteúdo a custo ínfimo

O u-tube127 é um novo canal, apenas não tem seu Silvio Santos ou seu Roberto Marinho. Na verdade tem, mas ele já perdeu sua face grotesca, não nos pede mais que emocionemos na novela e nem que topemos tudo pelo dinheiro, mas que fiquemos alimentando sua database. Aparece agora sob a face de algum tipo de “democratização” da comunicação. Se a democratização é sobre a maioria, pode até ser que isso esteja certo, mas a democracia é coisa da minoria, e o u-tubo não tem nada a ver com minoria.

O u-tubo é um canal, mais um canal. Corporativo, como qualquer rede globo. A única diferença é que ele é mais esperto e mais adaptado aos tempos modernos que nossos velhos animadores de auditórios. Ele nos diz: “do it yourself”; delegando-nos o trabalho, para na seqüência dizer: “but give it to me”. Ele capitaliza nossas emoções. É uma espécie de capitalismo hiper-avançado, que nos retira uma “mais-valia” de uma ordem estranha, que nos parece desconhecida… Aparentemente não nos quer vender nada, nem tampouco espera que compremos algo. Nos pede apenas um sorriso complacente e divertido, e nos põe a trabalhar para ele como se tivéssemos alimentando o vampiro capital que não sabemos onde mora nem como vive.

Funciona assim: ele captura toda diversidade, toda multiplicidade da rede e tenta condicionar o caráter selvagem do peer-2-peer128; tecnologias de compartilhamento em rede capitalizadas num modelo centralizador - “único-tubo” – que se apresenta, às avessas, como um Modelo dela: “olha, um canal fácil de acessar, de conteúdo diverso, produzido pelos próprios usuários (que maravilha!), descentralizado, e que qualquer um pode assistir e produzir”. Isso se dá ao ponto que, inclusive grupos [e] movimentos de contestação chegam a ver nele um modelo de funcionamento da diversidade, um modelo para o tipo de mídia “alternativa” (ou o que quer que queiram chamar…), enquanto ele é justamente o contrário, a capitalização da alternativa, a própria conversão da rede como processo num modelão-indústria (na qual trabalhamos sem sermos pagos), a base de muitos GB de memória e servidores que só a grana pode sustentar. O u-tubo é um modelo centralizado(r) de recursos infraestruturais e de produção de conteúdo. Radicalizando, pode-se arriscar a dizer que no plano de uma política do desejo, o u-tube é o modelinho orkut-video, algo como “broadcast your ego”, e que o que menos têm-se ali é algo de social.

Mas aí chegaríamos à questão, o problema são os patrões, a marca, a valorização da produção baseada no compartilhamento e na colaboração como mercadoria, etc. Enfim, a utilização da máquina técnica como instrumento de mercado e do capital. Velho debate; a tomada dos meios nos faria engajar em outra sociedade? Se fôssemos os donos do u-tubo a coisa seria diferente? Cremos que não: estética-política, forma-conteúdo, organização-gestão-coletiva, tecnologia e descentralização, tudo junto, tudo implicando um ao outro.

7.2 O Tubo de Ensaio

Existe ainda outro processo de captura no único tubo, este talvez sendo mais perigoso: o processo social da atribuição de notoriedade e celebridade do conteúdo.

Quem publica vídeo lá, apesar de constituir uma multidão de gente, ainda é uma grande minoria em relação aos “free riders”, a galera que só baixa conteúdo. No entanto, quem baixa também classifica e recomenda. Nisso, o banco de dados captura o processo de construção da fama e do sucesso.

Até hoje, o sucesso de algo da cultura de massa sempre foi algo muito imprevisível: os/as129 produtores e gerenciadores de cultura não sabem exatamente o que fará ou não sucesso e sempre estão dando tiros nos escuro: muita coisa acaba em fiasco e muita apenas é consumida por conta de uma violenta propaganda.

É plenamente possível que todo banco de dados corporativo baseado em redes sociais esteja sendo utilizado no sentido de personalizar a cultura de massa: se ela ainda é constituída por produtos pasteurizados desenvolvidos para serem consumidos por milhões, o conhecimento em alta resolução das relações sociais permitirá que a cultura de massa se constitua por milhões de produtos personalizados a serem consumidos em massa.

Não precisamos nem chegar a esse nível de personalização: se a produção cultural ainda se basear em poucos e vultosos investimentos em grades projetos, mesmo assim um banco de dados como o único tubo pode ser utilizado para pautar seu desenvolvimento.

Ou seja, o único tubo é um elo possível de feedback da indústria cultural, já que ele capta diretamente os anseios do espectador, melhor que central de atendimento, melhor que IBOPE. Nesse sentido, o Único Tubo é um entubador de pessoas e relações sociais pois as coloca em tubos de ensaio de um grande experimento da indústria cultural.

Além do mais, muitos desses indicadores influenciam no próprio comportamento da rede social: o ranking dos mais baixados é mensuravelmente sem sentido, já que proporcionam aos primeiros vídeos mais baixados serem mais baixados ainda e monopolizarem a atenção das pessoas, fazendo com que seja mais difícil para novos vídeos adicionados galgarem os altares da fama. É aquela história: “o best-seller é um livro que vende bem devido ao fato de estar vendendo muito bem”. Ou seja, esses bancos de dados já em si são um retrato da influência das pessoas sobre a popularização do conteúdo e do banco de dados sobre as pessoas. O Único Tubo dificilmente consegue filtrar a participação dos/as usuários da influência do marketing desses indicadores na construção da fama: em si mesmo já é um sistema propositalmente viciado, pois investe no mundo da difusão cultural baseada na propaganda simultaneamente social e corporativa: os produtores culturais criam o conteúdo, o aparato corporativo dá o start e a rede social fará a divulgação a custo ínfimo.

A negação da rede social idiotizada é também uma negação do mapeamento e da disponibilização desse mapa entre os perambulantes. Sem mapa, as pessoas terão que forçosamente exercer plenamente suas capacidades críticas, além de serem obrigadas a manter relações sociais efetivas e pessoais.

O banco de dados sobre uma rede social é um mapeamento, enquanto que a ausência dele obriga as pessoas a cartografarem por conta própria, sempre num terreno desconhecido mas também sempre com uma experiência nova. O mapeamento da sociedade tende a corroer as relações grupais: se alguém pode em poucos cliques descobrir qualquer vídeo, por que é que vai conversar sobre alguém a respeito, se o sistema já entrega tudo classificado? No máximo, ficará igual conversa sobre filmes enlatados, sobre novelas ou sobre os hits do momento: todo mundo já conhece e já consumiu e portanto a conversa se restringe apenas à celebração do conteúdo, jamais sendo a conversa real, maior que a soma das partes e onde se pode dizer: “nossa, não conhecia tal autor, mas me lembra de uma música, já ouviu?”, pois desde o início da conversa todos os participantes/as já estarão culturalmente homogeneizados.


  1. Elaborada a partir da versão original de 14/11/2008, cuja cópia encontra-se em https://sarava.fluxo.info/Estudos/TuboDeEnsaio.↩︎

  2. Referência à “plataforma” de vídeos Youtube, à época ainda uma novidade (Nota do Editor).↩︎

  3. “Peer-to-peer”, or p2p, é uma topologia de troca “ponta-a-ponta”, na qual pares interagem sem a mediação de entidades centralizadoras e potencialmente censoras (Nota do Editor).↩︎

  4. À época, foi adotada uma convenção de linguagem inclusiva ou neutra que talvez hoje não seja a mais adequada, mas por questões históricas ela foi mantida (Nota do Editor).↩︎