5 A cultura sob o ponto de vista da sociedade do controle e descontrole
Versão 0.0.1 - 08/11/202454
Os debates sobre cultura tendem apenas a saudar todas as possibilidades que as novas tecnologias trazem às pessoas: novos equipamentos de captura e manipulação de conteúdo audiovisual permitem não apenas à chamada “sociedade civil” novas formas de expressividade como também viabilizam novas formas de luta e resistência por parte de grupos e movimentos sociais.
Esse discurso da valorização das produções do tipo “faça-você-mesmo” não é mais uma bandeira de grupos da esquerda radical e já produz ecos em grande parte da sociedade, curiosamente atingindo não apenas governos mas até as corporações. Estas últimas inclusive até repensam o tempo todo a cultura corporativa tendo como inspiração a criatividade das pessoas durante o período que passam foram dos seus empregos.
Em vista desses debates sobre cultura – e mais recentemente sobre cultura digital – e de todo o otimismo que os cercam, torna-se tarefa importante levantar alguns questionamentos aos grupos e movimentos sociais horizontais, anti-hierárquicos, apartidários e autônomos sobre os perigos que podem existir no simples fato dos governo e do Estado terem adotado parte do discurso sobre cultura que é muito parecido do discurso daqueles que tentam acabar com o capitalismo e com o Estado. Para isso, é necessário que a relação entre cultura e iniciativas de controle seja estabelecida, assim como a existência de instâncias de gestão social governamental ou corporativa devem ser descritas como não apenas meras reprodutoras de um discurso cultural pré-estabelecido, mas também em suas atividades de investigação, captura e reordenamento das inovações culturais oriundas do sempre presente e indestrutível descontrole social. A gestão cultural hoje está presente nas políticas empresariais, governos e de partidos políticos e não pode ser simplesmente ignorada, pois mantém uma relação constante de exploração das inovações sociais que afeta inclusive os grupos e movimentos anteriormente citados e que com este texto desejamos alertar.
5.1 Mas o que é cultura?
Tanto regras, valores ou significados podem fazer parte da idéia do que é “cultura”. Neste texto, nos arriscaremos um pouco ao darmos uma definição que não pretende ser geral e nem universal: consideraremos a cultura como registros e descrições de atividades sociais e não o conjunto de atividades sociais em si. Então, quando alguém descreve o que determinadas pessoas fazem, tal descrição seria o objeto cultural, uma captura falha do que aquelas pessoas fazem. Elas fazem o que fazem e descrições sempre são incompletas. Um disco de vinil ou mesmo um disco óptico não contém apenas descrições sobre uma execução musical que ocorreu num dado momento?
Disso decorre imediatamente que a característica básica da cultura é que a descrição sobre a atividade humana não está restrita a permanecer numa estante: é possível reproduzir os sons gravados num disco de vinil e com ele fazer um programa numa rádio, da mesma forma como é possível declamar um poema escrito ou encenar uma peça de teatro que há muito foi escrita. Isso implica que as pessoas não estão apenas limitadas a fazerem das atividades sociais outras atividades sociais: podemos partir simplesmente de uma descrição de atividades sociais para produzir outras atividades.
A cultura é então extremamente contaminante e possibilita a existência do diálogo cultural: descrição e re-escrita. A cultura de um povo seria a descrição que o mesmo dá de suas atividades, seja dança, seja fala, seja qualquer atividade humana que possa ser sentida e com ela dialogada. Os próprios diálogos utilizam linguagens, que são descrições quando tocam os ouvidos do outro/a55.
Da própria dinâmica humana, no próprio momento da sua realização já podemos vislumbrar suas descrições, mas se sou eu que descrevo o que estou fazendo ou se é alguém que descreve o que faço, teremos duas descrições, duas visões culturais diferentes, mesmo que se tratem de uma mesma atividade realizada por uma mesma pessoa. O diálogo cultural é então fundamentalmente viabilizador de atividades humanas: as descrições ajudam as pessoas e os grupos socais a copiarem atividades mas também de as criarem e modificarem.
5.2 Cultura de luta
A cultura de um grupo, de um movimento social ou de um povo significa resistência quando os registros de suas atividades indicam resistências à dominação. Apesar disso, mesmo nesse contexto de cultura já é preocupante o fato de hoje existirem bancos de dados com esse tipo de descrição: bancos de cultura onde há a captura dos diálogos culturais.
Tais capturas podem em alguns momentos serem usadas para engessar as lutas de um grupo e para dominá-lo, o que é feito pelas ditas “agências de inteligência” e pela polícia. Alguns dos objetos culturais que descrevem formas de evitar tais capturas e dominações são chamados de “segurança”. No presente texto, no entanto, não estamos interessados propriamente na segurança dos grupos e movimentos sociais e nos bancos de captura das polícias políticas, mas sim em bancos de dados com propósitos mais gerais: os bancos de inovação cultural que estão interessados em todas as novidades culturais que possam ser armazenadas – sejam elas provenientes de movimentos sociais organizados ou não – e posteriormente transformadas em mercadorias ou atitudes humanas normatizadas.
Nas seções seguintes consideraremos a idéia de cultura não da forma que conceituamos até o presente momento, mas sim a cultura da forma como ela é vista por inúmeros administradores/as de diversos segmentos da sociedade, estejam eles atuando em departamentos de empresas ou em repartições governamentais.
5.3 O que é cultura na óptica da sociedade do controle
Consideremos agora o ponto de vista da cultura sob a óptica das instâncias de controle social, ou seja, queremos saber como funcionam as instâncias de apropriação e controle cultural. Uma abordagem possível seria começar nosso histórico a partir das manifestações culturais mais antigas – não necessariamente ligadas a alguma civilização – e identificar em cada período como o controle foi imposto nos processos culturais ou como os próprios processos contribuíram para a efetivação do controle social. No entanto, isso não será necessário pois, curiosamente, é na própria gênese do termo “cultura” e do seu significado inicial que encontramos não só o momento histórico correto para o início da nossa análise como a própria chave para entender em que sentido a palavra “cultura” encerra em si pressupostos de controle.
Tal definição de cultura, alternativa e de certo modo excludente com nossa definição dada na seção anterior encontramos em Bauman, onde ele afirma que 56
A idéia de cultura foi cunhada e batizada no terceiro quartel do século XVIII como um termo taquigráfico para a administração do pensamento e do comportamento humanos. A palavra “cultura” não nasceu como um termo descritivo, um nome resumido para as já alcançadas, observadas e registradas regras de conduta de toda uma população.
[…] O termo “cultura” foi concebido no interior de uma família de conceitos que incluía expressões como “cultivo”, “lavoura”, “criação” - todos significando aperfeiçoamento […] O que o agricultor fazia com a semente por meio da atenção cuidadosa, desde a semeadura até a colheita, podia e devia ser feito com os incipientes seres humanos pela educação e pelo treinamento.
Bauman ainda associa “cultura” a um termo mais anterior, “gerenciar”, que significa57
redirecionar eventos segundo motivos e desejo próprios. Em outras palavras, “gerenciar” (controlar o fluxo de eventos) veio significar a manipulação de probabilidades: tornar a ocorrência de certas condutas (iniciais ou reativas) de “pessoas, animais, etc.” mais provável do que seria de outro modo, tornando menos provável ou, de preferência, totalmente improvável a ocorrência de outros movimentos. Em última instância, “gerenciar” significa limitar a liberdade do gerenciado.
Se “agricultura” é a visão do milharal na perspectiva do agricultor, a idéia de “cultura” aplicada metaforicamente aos seres humanos era a visão do mundo social pelos olhos dos “agricultores de pessoas”: os administradores. O postulado ou pressuposto do gerenciamento não foi um acréscimo posterior nem uma interferência externa: desde o início e ao longo de sua história, tem sido parte integrante do conceito de cultura humana.
Sob esse ponto de vista, cultura então não é apenas o registro (seja ele na forma textual, visual ou sonora) e a classificação das atividades humanas, mas também a intervenção nelas realizada por alguma instância de controle social bem como a reprodução e a manipulação de tais registros.
Tal idéia de cultura e gerenciamento de pessoas surge juntamente com a gênese dos estados-nação, quando a configuração de poder provocou a mobilização de pessoas em torno de uma mesma fronteira e para tal usando conceitos como “pátria” e “tradição”. Tal idéia também ganha força com o advento das ciências sociais e demais instâncias reguladoras da sociedade. Como afirma Foucault 58,
Os mecanismos disciplinares são, portanto, antigos, mas existiam em estágio isolado, fragmentado, até os séculos XVII e XVIII, quando o poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos homens.
Essa visão de cultura permanece desde então circunscrita à esfera da gestão de seres humanos e de suas atividades, principalmente com o advento da indústria cultural, que se constitui não apenas como uma forma de extração do excedente salarial da massa operária, mas também como uma forma de incutir-lhes valores, necessidades e anseios sempre prometidos na forma de mercadorias e mesmo assim nunca satisfeitos.
Segundo Adorno59,
Falar de cultura foi sempre contra a cultura. O denominador “cultura” já contém, virtualmente, a tomada de posse, o enquadramento, a classificação que a cultura assume no reino da administração. Só a “administração” industrializada, radical e conseqüente, é plenamente adequada a esse conceito de cultura.
Bauman coloca muito bem que tal conceituação sobre a cultura leva, da mesma forma como num milharal há quem a cultive e a plantação que recebe seus cuidados, a uma relação assimétrica entre gerenciadores e gerenciados, divididos entre emissores e receptores. Há então uma a divisão entre “agir e sofrer o impacto da ação”, sendo que do ponto de vista dos gerenciados – e em geral daqueles descontentados/as – a cultura é por si mesma avessa ao gerenciamento e oposta ao status quo: para quem deseja subverter o estado de coisas, a cultura seria, ao contrário do cultivo do ser humano com finalidades de controle social, uma forma de “redirecionar eventos” e “tornar a ocorrência de certas condutas” humanas com objetivos de mudar a organização social.
5.4 O paradoxo da cultura numa sociedade controlada
Paradoxalmente, afirma Bauman – com base nas reflexões anteriores de Adorno – que, apesar da cultura necessitar de um gerenciamento rigoroso (e portanto conservador), ela é eficaz apenas quando ainda dá margens para a experimentação e a exploração de novidades. A relação de cultura e gerenciamento é então essencialmente paradoxal: é também no gerenciamento cultural que opera o controle das pessoas e dos processos sociais. No entanto, apenas uma ausência de controle possibilita a produção cultural.
A produção cultural e o culturalmente novo apenas podem ocorrer em ambientes propícios à inovação. Mas, em geral, o controle social é por sua natureza um inibidor da inovação e da mudança. Portanto, pelas análises de Adorno e Bauman, podemos dizer que o gerenciamento cultural é algo que, assim como controla e inibe, também permite em certos momentos a inovação de acontecer, seja por afrouxar os processos de controle como por não conseguir controlar todos os processos culturais ou ainda pela falta de necessidade de fazê-lo.
A indústria cultural então permite ou não consegue eliminar uma margem de descontrole de onde surge a inovação que posteriormente será administrada e integrada à indústria. Se ritmos musicais como o jazz, o blues, o funk, o soul, a batucada, o hip-hop, o mangue-beat, o punk, etc surgiram como alternativa dos excluídos/as ou marginalizados socialmente para se expressarem, hoje tais estilos constam nos catálogos de diversas empresas da indústria cultural, especializadas ou não nesses segmentos. Não foi a indústria que desenvolveu tais ritmos – apesar de dentro dela também existir departamentos onde a inovação e o desenvolvimento são permitidos –, ela simplesmente se apropriou deles quando começaram a se mostrar populares. Sobre isso, Adorno diz 60:
Assim, mesmo na indústria cultural, sobrevive a tendência do liberalismo em deixar aberto o caminho para os capazes. Abrir o caminho para esses virtuosos é ainda hoje a função do mercado, o qual, noutras esferas, já se mostra amplamente regulado.
O caminho para a transformação das atividades sociais espontâneas em registros, classificações ou práticas gerenciadas se encontra aberto na dinâmica da indústria cultural. Adorno não vislumbra escapatória desse esquema 61:
Aquele que resiste só pode sobreviver integrando-se. Uma vez registrado em sua diferença pela indústria cultural, já faz parte desta, assim como a reforma agrária no capitalismo.
[…]
A indústria cultural, por outro lado, tem boas saídas para repelir as objeções feitas contra ela como as contra o mundo que ela duplica sem teses preconcebidas. A única escolha é colaborar ou se marginalizar.
Muito menos Bauman acha que tal escapatória exista62:
Com certeza, um paradoxo. Ou um círculo vicioso… A cultura não pode viver em paz com o gerenciamento importuno e insidioso, e mais particularmente com um gerenciamento preocupado em distorcer o impulso da cultura no sentido da exploração e experimentação de modo a ajustá-lo à estrutura de racionalidade traçada pelos gerentes. […] Por outro lado, os criadores de cultura precisam de gerentes se quiserem (como é o caso da maioria deles, inclinada a “melhorar o mundo”) que os vejam, ouçam e escutem, além de ter uma chance de ver sua tarefa ou projeto concluídos. Do contrário, se arriscam à marginalidade, à impotência e ao esquecimento.
A administração cultural está adaptada a tal paradoxo com a cultura, pois é assim que a administração cultural e a cultura administrada se perpetuam. Se o gerenciamento for extremo, não haverá inovação e portanto não haverá produção, porque a produção cultural deve ser inovadora para existir, senão não é produção. Por outro lado, se não for gerenciada, não haverá controle cultural, o que para o governo, para partidos políticos, para as corporações ou qualquer outro tipo de poder é indesejável.
Tal visão contrasta com a idéia de que a cultura é apenas um dos “mecanismos homeostáticos” (regulatórios) “que preservam a monótona reprodução da realidade social, sua mêmeté”, o que seria verdadeiro numa sociedade completamente controlada, imutável e portanto dinamicamente morta63:
Preserva intacta a distribuição dada de probabilidades comportamentais necessária para manter inalterada a forma “do sistema” e enfrenta quaisquer brechas da norma, fraturas e desvios ocasionais que ameacem afetar o “equilíbrio” do “sistema”. Esse “eterno retorno” da mesmice era o horizonte utópico de uma totalidade social adequadamente gerenciada […] e a distribuição de probabilidades – estritamente controlada por um conjunto de dispositivos entre os quais a “cultura” como designadora do orgulho de um lugar – era amplamente considerada condição necessária de todos os esforços para avançar rumo a tal horizonte. Um “sistema social” adequadamente administrado era visto como um tipo de totalidade dentro do qual qualquer comportamento desviante das unidades humanas seria prontamente identificado, isolado antes de produzir algum dano irreparável e rapidamente desmontado ou eliminado. Dentro dessa visão de sociedade como um sistema que se auto-equilibra (ou seja, que permanece obstinadamente o mesmo apesar das pressões contrárias, a “cultura” significa a realização do sonho dos gerentes: uma efetiva resistência à mudança.
Dito simplificadamente: se apenas houvesse gerenciamento e controle completo das manifestações humanas de modo que as mais improváveis ou imprevistas fossem eliminadas do conjunto das atividades permitidas, então a cultura seria meramente o conjunto fixo, a tábua de mandamentos utilizada para a perpetuação de um estágio social. Levar em conta apenas o controle social, porém, é ignorar o papel do novo e daquilo que não é controlado: nem todas as probabilidades comportamentais podem ser estimadas e e facilmente eliminadas. Em outras palavras, não existe capacidade de informatização e catalogação total e muito menos controle total64. No entanto essa foi a idéia que por muito tempo esteve inclusive na mente dos próprios gestores culturais.
Hoje, porém, o gerenciamento cultural já detectou tal equívoco conceitual e se adaptou à impossibilidade de gerenciamento cultural absoluto. Como o próprio Bauman atesta65,
a “revolução gerencial versão dois” foi sub-repticiamente conduzida sob o estandarte do “neoliberalismo”: gerentes passando da “regulação normativa” para a “sedução”, do monitoramento diário para as RP [Relações Públicas], e do modelo panóptico de poder, indiferente, sobre-regulamentado, com base na rotina, para a dominação por meio de uma incerteza difusa, sem foco, da precarité e de uma quebra de rotinas incessante e aparentemente casual. E então veio o gradual desmantelamento do Estado a que as partes principais das políticas de vida costumavam estar conectadas, e um deslocamento e flutuação dessas políticas para o domínio presidido por um mercado de consumo calcado na incurável fragilidade das rotinas e sua rápida substituição – suficientemente rápida para evitar qualquer cristalização em hábitos ou normas. Nesse novo ambiente, há pouca demanda pela restrição, desmontagem ou abrandamento do pernicioso impulso transgressor e daquela experimentação compulsiva apelidada de “cultura”, visando a equipar a ambos com os veículos do auto-equilíbrio e da continuidade. Ou pelo menos os portadores ortodoxos dessa demanda – os gerentes dos Estados construtores de nações – perderam o interesse em equipá-los, e agora que todos nós fomos reciclados em, acima de tudo, consumidores, os novos roteiristas e diretores do drama cultural desejam que tudo, menos a conduta dos seres humanos, seja refreado, regulado e submetido a uma rotina, monótona e inflexível.
O gerenciamento cultural de hoje, portanto, não se trata apenas de catalogação, análise e coerção social, mas também incentiva uma certa margem de transgressão tanto da parte dos consumidores quanto de quem produz cultura: para suprir a necessidade sempre crescente da indústria em vender produtos, a indústria opera, além da obsolescência programada, a criação constante de necessidades para o mercado consumidor. A criação de necessidades culturais só pode ocorrer mediante a obsolescência de práticas culturais anteriores. Dessa forma, um ritmo musical e uma tendência da moda devem suprimir ou diminuir e presença do ciclo anterior. A transgressão e a experimentação são, então, incentivadas a ocorrerem até um certo ponto, pois a transgressão orientada à mudança da ordem social certamente poderia sofrer uma contenção ao acionar o gerenciamento em sua forma mais controladora e opressora. Transgressões favoráveis à mercantilização e perpetuação do modelo são mais do que encorajadas.
Mas, mesmo assim, a análise de Bauman – e conseqüentemente a de Adorno – não parece suficiente para entender como atualmente opera o gerenciamento cultural numa sociedade simultaneamente controlada e descontrolada. Primeiramente, apesar de Bauman tratar da chamada “liquido-modernidade” (um estágio que ele considera como posterior até à pós-modernidade), e mesmo que ele concorde que o gerenciamento cultural é dado em termos de gerenciadores e gerenciados e que o paradoxo entre a cultura e a administração é uma conseqüência da tensão entre criadores e gestores culturais, ele parece distinguir a dinâmica da cultura em três tipos de agentes distintos: administradores culturais, inovadores culturais e consumidores culturais. Tais divisões existem, porém estão cada vez mais indistintas.
Hoje o consumidor tem papel fundamental da determinação de novos produtos culturais66 e da construção da notoriedade, da celebridade e do sucesso de tais produtos assim como na eliminação dos produtos fracassados67.
Em segundo lugar, a análise cultural de Bauman não está preocupada na capacidade de alguma transgressão ter sucesso na subversão desse modelo gerencial da cultura, mas sim com a garantia de que certos “produtos culturais tenham uma chance de revelar sua verdadeira qualidade quando a demanda do mercado por eles não estiver visível” e com a extinção de certais práticas e conteúdos culturais ocasionada pela obsolescência mercadológica, já que a “linha que divida os produtos culturais ‘de sucesso’ […] dos produtos culturais fracassados é traçada por vendas, avaliações e resultados de bilheteria”.
Enquanto Bauman está preocupado com a legitimidade dos gerentes culturais na definição do que é culturalmente “bom” e que portanto deve permanecer, nossa preocupação é outra: o quanto o gerenciamento da indústria cultural afeta e se apropria dos grupos e movimentos sociais.
5.5 A captura das inovações dos movimentos
Dada a dinãmica da gestão cultural sob o ponto de vista das instâncias de controle até agora mencionada, que tanto controla quanto assimila o descontrole, não teria o papel transgressor representado por diversos grupos e movimentos sociais nessa região do não-explorado e do não-experimentado em matéria cultural atuado como agente de inovação cultural?
Mais especificamente: os movimentos sociais, ao inventarem novas formas de resistência contra novas formas de dominação, não acabam involuntária e acidentalmente oferecendo material novo passível de catalogação e aplicação na indústria cultural e na prática de gerir cultura? Essa pergunta também pode ser feita do seguinte modo: qual o papel dos movimentos transgressores que agem pela mudança do atual estado de coisas na captura de suas inovações culturais pelos gerenciadores sociais?
Mesmo que consideremos a cultura dos movimentos e grupos sociais como diálogos, descrições e registros de suas atividades ou mesmo suas criações, modificações e reproduções, não podemos esquecer que tais registros podem ser interceptados por governos e corporações, nem sempre com o objetivo de derrotar as lutas: tal interceptação pode ser movida para aprender melhor como as pessoas se comportam em condições adversas para então estimular ou coagir determinadas atitudes. Isto é, a interceptação e apropriação cultural por parte das empresas, corporações e instituições pode ter motivos não só políticos, mas também financeiros, ideológicos, simbólicos, etc.
Vejamos agora um exemplo de apropriação cultural que se deu durante e depois do auge do movimento anticapitalista ou alterglobalização68 (chamado erroneamente pela mídia de anti-globalização), movimento cujo clímax ocorreu entre os anos 1999 e 2003 e que foi constituído como o resultado da convergência de inúmeros movimentos sociais distintos e inspirados por princípios comuns 69:
Esse é um movimento que contesta a dominação da globalização neoliberal em todas as suas manifestações - da cobiça corporativa à degradação ambiental e os alimentos geneticamente modificados. Baseia-se à volta de um programa de protestos sociais amplo que incorpora uma multitude de preocupações e identidades políticas diferentes. […] Por um lado, o movimento anti-globalização une diferentes identidades à volta de uma luta comum; por outro, esse campo em comum não é determinado a priori, ou baseado na prioridade de interesses de uma classe em particular, mas articulado de forma contingente durante a luta em si. O que torna esse movimento radical é sua imprevisibilidade e indeterminância - a forma como ligações e alianças inesperadas são formadas entre diferentes identidades e grupos que, de outra forma, teriam pouco em comum. Ao mesmo tempo em que esse movimento é universal, no sentido de invocar um horizonte emancipativo comum que constitui as identidades dos participantes, ele rejeita a falsa universalidade das lutas marxistas, que negam a diferença e subordinam as outras lutas ao papel central do proletariado - ou, mais precisamente, ao papel vanguardista do Partido.
O movimento alterglobalização pode ser entendido como uma inovação das lutas sociais, tradicionalmente restritas a focos isolados – movimento feminista, movimento negro, movimento GLBT70, sindicalistas, ambientalistas, entre inúmeros outros grupos que durante muito tempo encamparam batalhas solitárias. Ao perceberem que todos os males que combatiam tinham origens comuns – o capitalismo e os estados nacionais – tais movimentos se uniram de diferentes formas e em diferentes lugares de forma horizontal, anti-hierárquica e não-centralizada para articularem conjuntamente lutais locais e globais. O surgimento do movimento alterglobalização foi uma inovação inspirada tanto pelo aprendizado que esses movimentos passaram dos anos 60 até fim da década de 90 em suas vitórias e derrotas quanto pelas possibilidades que as novas tecnologias de expressão e comunicação apresentavam ao sofrerem o barateamento levado a cabo pela indústria microeletrônica. Sua maior inspiração talvez tenha vindo do movimento Zapatista, que foi o que inaugurou uma nova e incrível forma de atuação ao utilizar as novas formas de comunicação para internacionalizar sua luta. Ou seja, o movimento alterglobalização não foi criado através de um simples manifesto ou através de processos políticos tradicionais que levam à formação de instituições sujeitas a um gerenciamento rígido e repressivo: muito pelo contrário, esse novo movimento surgiu a partir de uma gradual e distribuída articulação não-gerenciada e esse fui um dos seus maiores méritos.
Não considerar que os processos sociais ocorridos durante a formação e o auge do movimento alterglobalização possam ser entendidos como “cultura desgovernada” ou “não cultivada” dificulta o entendimento de que seus objetos culturais fossem copiados pelos/as gerentes de cultura das empresas, dos governos e mesmo de movimentos sociais oportunistas. Aquilo que pode ser assimilado pelos agricultoroes/as culturais tende a oferecer menos perigo à mudança do sistema social, A militância em partidos políticos e organizações de oposição rígidas, por exemplo, há muito fazem parte da contenção social promovida pela cultura gerenciada.
Mas quais inovações culturais do movimento alterglobalização que foram assimiladas pela indústria cultural? Os grupos e indivíduos envolvidos nas articulações anticapitalistas foram um dos principais utilizadores das novas tecnologias de digitalização, transmissão/recepção e manipulação de conteúdo, sendo que esse eles inventaram novos usos que chamaram atenção suficiente a ponto de parte desses usos terem sido assimilados por alguns gerentes culturais.
A indústria microeletrônica, em sua prática de mercantilizar o tempo livre dos cidadãos dos países desenvolvidos e transformá-lo em mero apêndice do tempo de trabalho71, se utilizou do barateamento crescente dos dispositivos miniaturizados para criar, ao longo dos anos, aparelhos de gravação e reprodução de conteúdo (áudio, vídeo e também texto) cada vez mais sofisticados, desenvolvimento ainda em curso mas que no final dos anos 90 já havia produzido equipamentos com a sofisticação suficiente para possibilitar a digitalização de conteúdo audiovisual bem como sua distribuição por meio físico (discos de gravação ópticos ou magnéticos, bem como memórias de estado sólido) como por lógicos (redes de dados) por qualquer pessoa, sem necessidade de conhecimento especializado. O tempo todo aliado a esse desenvolvimento esteve o surgimento da rede mundial de computadores, a Internet, criada inicialmente pelo complexo militar-acadêmico e disponível para os cidadãos dos países desenvolvidos apenas também nos fins dos anos 90.
Tanto os aparelhos de digitalização de conteúdo como câmaras fotográficas, de vídeo ou gravadores de áudio – criados pela indústria com o objetivo de ocupar o tempo livre das pessoas com o registro de casamentos, férias, aniversários e eventos sociais semelhantes – quanto a Internet – criada inicialmente para o meio militar e acadêmico e tendo sido apenas posteriormente vislumbrada como passível de exploração comercial – não tinham sido previstos em nenhum momento para qualquer uso social ou para o aperfeiçoamento da democracia, o que dirá do seu emprego em manifestações de rua organizadas com o objetivo de enfrentamento direto dos poderes estabelecidos. Tais exemplos mostram como o próprio controle da cultura, ao aplicar suas regras de mercado em produtos, criou o descontrole no uso de suas próprias mercadorias.
Ao criar objetos técnicos, a indústria não tem como prever todos os seus usos. Um equipamento planejado para ser utilizado na falsária prática dos hobbies pôde ser pervertido e empregado para fins diversos. No caso dos equipamentos digitais, não houve apenas um uso notoriamente imprevisto: os mesmos foram e são utilizados também para a cópia não-autorizada de conteúdo protegido pela propriedade intelectual (a chamada “pirataria”) e a indústria que os criou acabou por prejudicar a indústria do entretenimento, tradicionalmente uma aliada das empresas de microeletrônica.
Filmar um ato de repressão policial não foi uma invenção propriamente surgida dentro do movimento alterglobalização. Muito menos o uso de sítios na internet para a divulgação de material político. A inovação esteve na convergência do uso de todas essas tecnologias numa luta ampla: a criação de sítios na internet para a publicação automática de conteúdo aliada ao registro de atos políticos possibilitou também uma convergência de movimentos, mas desta vez num espaço virtual – chamados de meios de informação livres ou não-corporativos –, com locais comuns de acumulação de conteúdo multimídia relacionado às manifestações dos movimentos.
Não apenas sítios de publicação, mas também listas de discussão, salas de bate-papo e tecnologias de transmissão de áudio e vídeo em tempo real foram utilizadas nessa convergência. Ou seja, a inovação consistiu no uso convergente de todas essas tecnologias como forma de empoderamento das pessoas, que com pouco ou nenhum treinamento se tornavam aptas a se expressarem e criarem conteúdo. É notório que, durante as cúpulas e contra-cúpulas, os meios de informação livres tiveram mais acesso e mais uso do que os sítios da imprensa corporativa.
O movimento alterglobalização teve também como méritos principais o bloqueio de diversas reuniões de cúpula – onde governantes e empresários dos países mais desenvolvidos se reuniam com o objetivo de discutir e ratificar acordos que afetariam bilhões de pessoas72. Mas, junto com tais vitórias, vieram algumas derrotas: não só a criminalização, o refluxo do próprio movimento nos anos seguintes e o deslocamento das reuniões de cúpulas para locais cada vez mais distantes e inacessíveis, mas as próprias inovações organizacionais, logísticas e informacionais foram assimiladas por inúmeras instâncias de gerenciamento cultural e controle social73.
Rapidamente, muitos gerentes culturais aprenderam a lidar com esses novos usos e convergências de tecnologias digitais para o exercimento da expressividade pessoal. Puderam então usá-los como “cultura cultivada” e ainda diminuir a margem de indeterminação e de descontrole do sistema social: a explosão do movimento alterglobalização em termos de modo de produção midiática foi em questão de poucos anos copiada e “aculturada” para outras aplicações que não uma mudança da estrutura social.
Até 1999, a maioria dos sítios de notícias ou que mantinham conteúdo considerável eram tradicionalmente baseados no modelo de equipes editoriais e jornalísticas especializadas – os chamados sítios de notícia ou portais de conteúdo da mídia corporativa. Sítios independentes e não-corporativos como o Indymedia74 – que foi um dos principais meios de divulgação e organização dos movimentos sociais durante o movimento alterglobalização – demonstraram na prática o poder das pessoas quando mobilizadas conjuntamente na publicação de conteúdo e o quanto um aumento da participação dos usuários/as em sítios da Internet pode enriquecê-lo. A partir de então surgem inúmeros serviços corporativos que exploram a capacidade e a vontade dos seus usuários/as. Os sítios “tradicionais” da mídia comercial ainda existem, porém hoje também existem espaços corporativos baseados no paradigma de dar mais poder de controle ao usuário. Até o discurso de que as pessoas devam colaborar já foi adaptado, como explica descaradamente um release de uma empresa da área de tecnologia da informação75:
Aceitar que a colaboração do cliente/usuário é muito mais poderosa que a colaboração interna é o grande desafio das corporações para os próximos anos. Representa mudar a origem do poder, tirá-la dos gestores experientes e colocá-la, ainda que de maneira gerenciável e moderadora, na mão do usuário. São mudanças culturais que vão muito além de simples mudanças de processos.
Em paralelo, podemos aplicar o mesmo pensamento internamente. Perceber que as engrenagens internas (funcionários e colaboradores) poderem ser excelentes criadores de conteúdos e processos. Estamos distribuindo o poder dentro da corporação.
Notar que, ao mesmo que que ser quer tirar a origem do poder dos gestores, tal empoderamento ainda é feito de “maneira gerenciável e moderadora”. Acreditar que tal mudança representa um real ganho de poder por parte dos usuários é tão inocente quanto achar que explorar a variedade natural de certas sementes é deixar que as plantas tomem conta da própria horta: o que ocorre, na verdade, é que o gerenciamento feito dessa forma cultural se torna muito mais eficiente, já que:
- Com ele, os/as administradores sociais não precisam cuidar de todos os detalhes da gestão cultural, de modo que eles passam por uma diminuição de sua carga ocupacional, que tanto pode ser utilizada para outras atividades organizacionais ou inclusive para demissão de parte dos gerenciadores, o que no fim das contas pode até gerar uma maior centralização da gestão cultural.
- O fato de uma pessoa agir como administradora cultural não implica necessariamente a capacidade (e muito menos a capacidade total) de identificação de padrões culturais em surgimento ou a condição de determinar quando é o momento de permitir a transgressão de normas ou quando forçar a coerção através de um cumprimento mais estrito delas. Deixar com que as pessoas forneçam tais informações é de grande valia para um gerenciamento mais eficiente.
- A própria informatização requer que, para a melhor estimativa a respeito de quais medidas administrativas devem ser aplicadas à cultura, as pessoas forneçam mais dados a respeito de suas escolhas e de suas produções.
Nunca como hoje o ideal do “faça você mesmo”, antes utilizado pelo mercado apenas para vender equipamentos, foi tão forte: há um grande apelo para que as pessoas adicionem conteúdo em bancos de dados multimídia (texto, imagem, vídeo e áudio) assim como ajudem na própria classificação e manutenção do conteúdo publicado. Nesse sentido, o movimento alterglobalização não foi a única manifestação social que resultou nesse tipo de inovações culturais: o barateamento dos computadores e a Internet também mudou parte da cultura corporativa quando o modelo tradicional de produção (principalmente no mercado de software) foi confrontado pelo modelo do software livre, onde a criação, a manutenção e a melhoria dos programas de computador eram feitas de forma voluntária por alguns desenvolvedores/as e seu grupo de usuários/as. Do aprendizado que o mundo corporativo teve com o software livre nasceu o conceito de “código aberto”: uma forma de explorar o trabalho voluntário para a melhoria de produtos corporativos ou financiados por corporações76.
Se a maioria das atividades humanas são passíveis de categorização e gerenciamento é um dado já constante no paradoxo da inovação cultural (transgressão) e no gerenciamento (coerção), estender essa relação para o papel inovador dos movimentos anticapitalistas e alterglobalização parece mais paradoxal ainda e demonstra uma capacidade enorme do sistema social vigente em acabar com contradições e diferenças ao assimilá-las.
Curioso é que no próprio ’Manifesto da Ação Global dos Povos”, documento que estabeleceu os princípios básicos de ação e luta durante o movimento anti ou alterglobalização, já havia um posicionamento explícito com respeito ao gerenciamento cultural77:
O controle sobre a cultura deve ser arrancado das mãos das corporações e deve ser reclamada pelas comunidades para si mesmas. Autoconfiança e liberdade só são possíveis na base de uma viva diversidade cultural que permita aos povos determinar de modo independente todo e qualquer aspecto das suas vidas. Nós estamos profundamente comprometidos com a libertação cultural em todas as áreas da vida, da alimentação aos filmes, da música à mídia. Nós contribuiremos com nossa ação direta ao desmantelamento da cultura corporativa e a criação de espaços para a criatividade genuína.
Mesmo com a vontade de auto-controle de sua cultura, muitos dos processos sociais criados ou recriados durante tal movimento hoje já foram muito bem assimilados pelas instâncias de controle ou pelo mercado: trabalho colaborativo, compartilhamento de conhecimentos, aproveitamento do trabalho voluntário, etc. O movimento alterglobalização não foi completamente derrotado e não deixou de existir: ele apenas passa por um refluxo. A apropriação de suas inovações pela indústria cultural não contribuiu com esse refluxo, mas em certo sentido foi uma derrota, já que o controle da cultura não foi “arrancado das mãos das corporações”, mas sim parte da cultura criada pelo movimento aterglobalização passou também a estar disponível para o uso corporativo.
É importante ressaltar que nem toda a produção cultural de um movimento pode ou será efetivamente capturada, muito menos o que até agora foi afirmado implica que “o sistema” está de olho o tempo todo no que os movimentos produzem de novo. O que podemos afirmar apenas é: os administradores de pessoas da indústria cultural estão interessados em inovações que aumentem seu controle sobre a sociedade. Em segundo lugar, que não existe poder totalmente soberano ou controle total, no sentido de que mesmo os gerenciadores de cultura podem estar sendo gerenciados e nem eles conseguem controlar completamente o comportamento das pessoas. Terceiro, que o controle pode gerar descontrole. Quarto: em momentos em que inovações promoverem o florescimento de manifestações sociais, sejam ou não de caráter contestatório, certamente elas chamarão a atenção de gerentes culturais ávidos por mercantilizar tais inovações ao canalizá-las para empreendimentos comerciais. Se a captura será efetuada, dependerá principalmente da característica da inovação e da competência do gerenciador. Em quinto e último lugar: a captura da inovação de um momento não implica necessariamente que o movimento foi vencido e que portanto a ele só resta figurar como um perdedor na historiografia oficial. As lutas podem resistir independentemente de algumas de suas inovações terem sido capturadas. No entanto, pode acontecer também que uma inovação de um movimento pode ser capturada e usada para neutralizá-lo; ou, alternativamente, uma inovação criada dentro das instâncias de controle cultural do sistema social podem ser usadas para neutralizar uma inovação de um movimento. Foi assim, por exemplo, que o capitalismo logístico-informacional neutralizou grande parte da luta sindical em nível mundial ao fragmentar o parque industrial em fábricas e escritórios espalhados por todo o globo numa linha de produção em grande parte terceirizada.
5.6 É possível escapar do paradoxo da cultura?
A questão que deve ser colocada aqui não é “se essas inovações culturais não ocorreriam inevitavelmente e independentemente da existência de movimentos como o alterglobalização” (cuja resposta dificilmente pode ser generalizada) ou “se o embate não se daria no plano da cultura e sim no plano da ação” (o que não é verdade), mas se o papel das lutas sociais, no fim das contas, serviria apenas como, nas palavras de Adorno, “um lubrificante para o sistema”78: por mais que tais lutas sempre sejam reprimidas, elas teriam duas finalidades básicas do ponto de vista do gerenciamento social: aliviar tensões e inovar culturalmente? Se o controle social não consegue eliminá-las por completo, no fim das contas elas não entrariam no balanço como descontrole transformado em controle, como manifestação social transformada em cultura corporativa, como desvio domado, como calibração do sistema social de modo a evitar e diminuir cada vez mais as margens de indeterminação e as possibilidades de fuga desse esquema?
Da mesma forma como Felix Guattari disse estar “convencido de que todas as variações possíveis de um outro Maio de 1968 já foram programadas em IBM”79, as práticas dos movimentos sociais são assimiladas e simuladas, seja para contê-las, seja para delas extrair práticas passíveis de ingressar no esquema da cultura gerenciada. É um exagero achar que todas as variações de um movimento alterglobalização já estejam simuladas e arquivadas, porém a capacidade dos governos, das corporações e demais instituições de assimilarem inovações não pode ser negligenciada.
O controle total não existe e portanto sempre haverá margem para o surgimento de objetos culturais com potenciais transformadores. Também sempre haverá pessoas com vontade de criá-los e adotá-los. Agora, em que medida esse objetos podem ser protegidos da captura pelo sistema para sua manutenção? Se é importante proteger tais objetos da administração centralizada que controla o destino da cultura, então a resposta não parece que virá encapsulada dentro de um objeto cultural – já que como descrição ou registro qualquer objeto cultural sempre será passível de cópia, transformação e assimilação –, mas sim na luta contra o próprio processo de administração cultural que tende a centralizar os objetos.
Surgem então algumas perguntas retóricas: é mesmo papel de instituições, públicas ou privadas, empresas, partidos políticos ou governos a gestão dos objetos culturais? Não, e isso já está respondido no próprio Manifesto da AGP: enquanto a administração da cultura estiver nas mãos das instituições, a autodeterminação cultural das pessoas permanecerá sob sério perigo. Existe cultura realmente livre num ambiente gerenciado? Onde pessoas são administradas a partir da seleção de comportamentos desejados não pode haver cultura livre.
Portanto, a gestão cultural dos governos e das corporações não deve ser combatido da forma como consta no “Manifesto da Ação Global dos Povos”? A resposta parece ser afirmativa e a criação e manutenção da sua própria cultura deveria ser papel exclusivo das pessoas e dos grupos sociais, da mesma forma como todos/as podem ser livres para escolher e traçar seus próprios desejos. Não seria esse o caminho óbvio a ser seguido, uma vez que a tecnologia necessária tanto para a criação quanto para a preservação dos conteúdos culturais já está suficiente madura para que as pessoas cuidem do registro de suas próprias atividades e manifestações?
Falar de autogestão e autonomia não implica portanto falar também de autogestão cultural feita não apenas de forma descentralizada, mas também distribuída de forma que qualquer pessoa possa e na medida do possível efetivamente exerça seu poder de escolher quais objetos culturais irá manipular? A defesa contra a apropriação cultural não está da passagem de práticas culturais abertas para secretas ou no escondimento dos conteúdos culturais, mas sim na capacidade dos povos em evitar a adoção ou a perpetuação de objetos culturais pasteurizados.
5.7 Autogestão cultural distribuída
Mas o que seria autogestão cultural distribuída? Retornemos agora à nossa concepção de cultura, cultura como descrição e registro de atividades. Dessa noção de cultura surge a de diálogo cultural e de trocas de modos de agir e de se comportar. Como se daria uma autogestão distribuída de tais diálogos?
Diálogos são fluxos que ocorrem nalgum meio. Uma conversa num espaço aberto, por exemplo. A comunicação não necessita de consensos ou autorização para se realizar. A gestão das discussões se dá exatamente durante o diálogo. Conforme se dialoga, os/as participantes traçam voluntária e involuntariamente fluxos simbólicos, informacionais, etc. A gestão é a contribuição que cada pessoa dá durante a existência desses fluxos: se apenas duas pessoas discutem num ambiente com mais gente, a gestão do fluxo se realiza apenas através do diálogo dessas duas pessoas. Quem dialoga exerce uma gestão de fluxos: se ninguém mais participar da conversa, apenas as que o fazem é que manipulam o fluxo.
A autogestão distribuída, no contexto aqui apresentado, é a capacidade de um grupo de traçar seus fluxos de forma distribuída e sem que a gestão dos mesmos se concentre. Ou seja, a autogestão distribuída não requer nem instâncias de decisão consensuais e no caso de fluxos culturais a decisão é desnecessária: neles, há apenas trocas de registros e descrições comportamentais.
A autogestão distribuída ocorre com base na participação e na não-participação das pessoas. Em geral, e mesmo em grupos horizontais e anti-hierárquicos, existe uma tendencia ao gerenciamento centralizado, mesmo que involuntário (o que é muito curioso): a não participação das pessoas nos fluxos decisórios ou a delegação dos mesmos pode sim implicar que certas pessoas dos grupos se tornem administradas caso adotem os objetos culturais manipulados durante o diálogo no qual não participaram.
Um exemplo simples: quando alguém decide fazer uma festa, lhe convida e você vai, você participou de um agenciamento cultural. O que isso tem de mal? Nada, os fluxos se iniciam em geral por uma das partes que dialogam. Agora, se sempre você apenas for convidado e comparecer em festas e nunca tentar fazer sua festa ou ajudar na organização dela, então podemos dizer que há uma tendência de gerenciamento de pessoas, com papéis de anfitriões e meros convidados. Isso não é uma quebra de diálogo? Não é semelhante ao broadcast, onde programadores escolhem o que as massas devem ouvir?
A autogestão cultural distribuída se forma então a partir dos seguintes conceitos:
Cultura -> diálogo sobre práticas sociais
Gestão -> manipulação de fluxos
Autogestão -> autonomia na manipulação de fluxos
Autogestão distribuída -> autonomia na manipulaçãode fluxos distribuídos
Autogestão cultural distribuída -> autonomia na manipulação de fluxos
dialógicos distribuídos sobre práticas
sociais
A autogestão cultural distribuída é um pressuposto para os processos de resistência serem eficazes. Ela não é suficiente em si mesma porque apenas dá bases para a atuação, mas é o fundamento da autonomia cultural, que é a possibilidade de escolha sobre quais atividades desempenhar. É por isso que não apenas os/as ativistas mas também até quem não se considera como tal que prestem mais atenção ao gerenciamento cultural e na medida do possível não se deixem ser administradas em suas escolhas.
5.8 Os limites do controle e do descontrole
Na autogestão cultural distribuída assume-se notoriamente que o controle não existe: nunca se exerce controle. No máximo, se exerce a manipulação dos conteúdos. Controlar implica não apenas em acreditar que seja possível domar os processos e as manipulações efetuadas nos conteúdos – ou seja, quando se acredita que a modificação desejada será aplicada sem modificações e distorções ao objeto manipulado – mas também atuar no sentido de permitir ou restringir o acesso, o uso e a alteração dos objetos em questão.
Os/as administradores das empresas, do governo, etc acreditam que controlam ou agem como se controlassem os objetos culturais. Em verdade que em algumas vezes conseguem restringir o acesso, o uso e a alteração dos objetos e que também consigam mobilizar muitas pessoas ao redor de seus objetos culturais, mas é notório de que o fiasco também existe e nem sempre um objeto cultural será adotado na taxa desejada pelos administradores e muito menos há controle eficaz para o impedimento de disseminação de conteúdos caso sua distribuição ultrapasse a taxa desejada ou não esteja de acordo com seus pressupostos comerciais.
Se, para tais administradores/as da indústria e dos governos, a cultura implica em “redirecionar eventos segundo motivos e desejo próprios[…], ‘gerenciar’ (controlar o fluxo de eventos) veio significar a manipulação de probabilidades: tornar a ocorrência de certas condutas (iniciais ou reativas) de ‘pessoas, animais, etc.’ mais provável do que seria de outro modo, tornando menos provável ou, de preferência, totalmente improvável a ocorrência de outros movimentos. Em última instância, ‘gerenciar’ significa limitar a liberdade do gerenciado.”, tal redirecionamento de eventos com a manipulação de probabilidades não é brincar com a entropia social e também gerar descontrole?
Ou seja: por mais que esses administradores assumam a postura de controladores, articuladores ou viabilizadores de objetos culturais, jamais suas intenções serão totalmente efetivadas: no máximo, serão parcialmente e até é possível que parte do produto de suas ações seja até indesejável. É essencialmente isso que faz com que o gerenciamento na indústria cultural seja um empreendimento difícil e incapaz de estabelecer o controle total dos processos sociais.
Ao assumir veementemente que cultura não se controla, mas apenas se manipula e que o estabelecimento de instâncias de controle é nocivo para a cultura livre, a autogestão cultural distribuída se torna a prática social de construção coletiva de armazenamento e diálogo cultural sem finalidades de controle social.
A propriedade não é tudo na dinâmica da exploração, apesar de fazer parte dela. O controle ou a intenção de seu exercimento sim é mais importante hoje. No contexto das novas formas de controle cultural, tanto a propriedade dos bancos de dados de cultura não estão nas mãos das pessoas quanto, e isso é o mais grave, a possibilidade de manipulação dos objetos culturais é apenas em parte dado a elas: a parte em que elas entregam suas produções e suas escolhas ao banco de dados. O que disso pode ser feito está nas mãos apenas em quem tem acesso total ao banco de dados.
Torna-se então fundamental não apenas discutir a autogestão cultural distribuída mas também buscar viabilizá-la.
5.9 Notas
- Nossa discussão inicial sobre cultura como descrição e registros não é nova e tem muitas similaridades com conceitos como meme e DNA cultural (veja por exemplo “O Gene Egoísta”80, de Richard Dawkins81).
- Dizer que “o povo sabe o que quer mas também quer o que não sabe”, um pensamento comum entre políticos e empresários , além de atestar parte da dinâmica do desejo humano, também vislumbra a possibilidade de apresentar ao povo aquilo que ele quer mas não conhece, o que seria uma prática de gestão cultural.
- Se digital é controle82, então cultura digital é a gestão de pessoas por vias mais eficientes.
- A descrição precedente a respeito do papel da cultura e do seu gerenciamento pode ser em parte e analogamente adaptada para o campo da educação e da pedagogia, levando em conta os mecanismos disciplinares e aculturadores presentes na educação tradicional, assim como também a tendência da educação moderna pela adoção de práticas fordistas, tayloristas e toyotistas na formação de pessoas em larga escala.
- Agradecimentos ao Guile pela leitura polemizante, pelas observações e sugestões que foram de grande valia para o amadurecimento deste texto.
References
Elaborada a partir da versão original de 14/11/2008, cuja cópia encontra-se em https://sarava.fluxo.info/Estudos/CulturaControleDescontrole.↩︎
À época, foi adotada uma convenção de linguagem inclusiva ou neutra que talvez hoje não seja a mais adequada, mas por questões históricas ela foi mantida (Nota do Editor).↩︎
O “movimento alterglobalização” aqui referido é um conjunto de movimentos altermundistas, isto é, inspirados pelo mote que que “um outro mundo é possível”, com o adendo da máxima zapatista de que este outro seja “um mundo onde caibam muitos mundos” – “El mundo que queremos es uno donde quepan muchos mundos”, Ejército Zapatista de Liberación Nacional (1996). Se inicialimente usava-se a denominação “anti-globalização” a esse tipo de movimento – em resposta à globalização econômica neoliberal acelerada pela queda do bloco soviético no final dos ano 90 e também por uma série de “ajustes estruturais” forçadas em diversos países –, posteriormente os termos “alterglobalização” e “altermundismo” passaram a ser mais explicativos: trata-se de uma disputa de como seria uma existência global, e não de sua negação. O altermundismo da época caracterizou-se pela convergência de diversos movimentos sociais de várias partes do mundo, a partir da constatação de que havia um problema global e comum a ser enfrentado: o capitalismo baseado na transnacionalização da produção, da logística e das finanças para explorar e neutralizar o potential emancipatório dos povos, além de destruir o ambiente. O modo de ação era caracterizado pela diretiva de agir localmente e pensar globalmente (Nota do Editor).↩︎
“O Pós-Anarquismo”, Newman (2006); Newman (2010). Nota do Editor: não foi possível determinar exatamente onde o texto original de Saul Newman apareceu inicialmente.↩︎
Na época ainda não havíamos adotado outras siglas mais inclusivas como as recentes LGBTQIAPN+ – Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Pôli, Não-binárias e mais – e LGBTQIA2S+ – Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questionando, Intersexo, Asexuais, Dois Espíritos e mais (Nota do Editor).↩︎
As “reuniões de cúpula” já tem o elitismo no próprio nome: denotam “cúpulas” nas quais países-membros negociam acordos econômicos, em geral sem participação popular. Exemplos são reuniões da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Banco Mundial (BM). Episódios já clássicos de como o movimento altermundista intercedeu para impedir essas reuniões são o da OMC em Seattle (o chamado “N30”, ou 30 de Novembro de 1999, também conhecido como “A Batalha de Seattle”), do Banco Mundial em Praga (“S26”, ou 26 de Setembro de 2000) e do Grupo dos Oito (G8) em Gênova em 2001. Neste último houve uma repressão brutal por parte da polícia (Nota do Editor).↩︎
No otimismo da informatização dos anos 2000, havia uma impressão difundida dentro do altermundismo de que a computação operaria taticamente em favor dos movimentos sociais, permitindo que se organizassem tanto nas redes telemáticas quanto nas ruas para “travar” o sistema capitalista, num efeito similar ao crash dos sistemas computacionais face a algum tipo de bug ou comportamento inesperado. O “sistema”, se quisermos colocar nestes termos, revidou não somente com a apropriação de inovações descrita neste texto como também com o lançamento do novo paradigma de ordem mundial da “Guerra ao Terror” a partir de 2011, combatendo direitos civis e fomentando mais guerras neocoloniais. As reuniões de cúpula passaram a ocorrer sobre portas mais fechadas, mais espessas, com mais segredo e em locais mais remotos (Nota do Editor).↩︎
“Novos Centros de Poder”, ICOX (sd). Nota do Editor: este conteúdo não se encontrava disponível na data da revisão, em 28/09/2024.↩︎
Adorno usou a expressão em outro contexto (obras de arte transgressoras e altamente críticas confinadas em galerias de arte), porém no nosso exemplo ela serve de modo similar. Segue o trecho: “Today manifestations of extreme artistry can be forsted, produced and presented by official institutions; indeed art is dependent upon such support if its to be produced at all and find its way to an audience. Yet, at the same time, art denounces everything institutional and official. This gives some evidence of the neutralization of culture and of the irreconciability with administration of that which has been neutralized. Through the sacrifice of its possible relation with praxis, the cultural concept itself becomes an instance of organization; that wich is so provokingly useless in culture is transformed into tolerated negativity or even into something negatively useful - into a lubricant for the system […]” – Adorno (2006) Cap. 4 - Culture and Administration, pág 117.↩︎
Mas essas semelhanças com a memética e “DNAs culturais” parece que terminam por aqui. Richard Dawkins, assim como seus predecessores W. D. Hamilton e George R. Price, abusam da biologia em busca de explicações racionalizadoras para atitudes altruístas, que segundo eles seriam meros mecanismos otimizadores da perpetuação dos genes. A questão do altruísmo perturba o pensamento liberal e neoliberal, e assim o esforço por racionalizá-lo dentro de um arcabouço racionalista específico é o primeiro passo para tentar erradicá-lo das sociedades, numa história muito bem narrada no documentário de Curtis (2011), “All Watched Over by Machines of Loving Grace”. Vale então ressaltar que a intenção do presente texto é totalmente oposta a qualquer media de diminuição de potenciais altruísticos e solidários (Nota do Editor).↩︎