6 A apropriação energética e simbólica

Versão 0.0.1 - 11/11/202483

Há cada vez mais discrepância entre o discurso e a realidade imediata. Já faz tempo que o capitalismo funciona num nível que está além da ideologia, da significação, do discurso. Ele precisa mobilizar toda uma máquina de produção do consenso, de produção do sentido de mundo. Toda a discussão que se territorializar dentro desse mundo de sentido criado pelo capitalismo será inofensivo (do ponto de vista de criação de possibilidades de escape) e ainda contribuirá na criação de novidades para ele.

É nesse cenário que se insere um circuito profissional-terceiro-setor-estatal em que “as redes ativistas”84 vem se misturando. Se por um lado essas redes acreditam que é possível subverter (ou “hackear”) as estruturas institucionais para de algum modo promover mudanças sociais, por outro elas acabam sendo “hackeadas”85 ao oferecerem como produto o resultado do seu ativismo, justamente aquilo que foi arduamente construído com o trabalho colaborativo de muitas pessoas. Essa herança é então capitalizada pela máquina. Em troca de financiamentos ou equipamentos, os grupos acabam entregando sua história e todo seu patrimônio simbólico.

Mas não é apenas nesse nível que o sistema busca tomar conta de tudo. Existem mecanismos que roubam, capturam as energias para alimentar uma máquina de dominação que, no plano do discurso, é aquilo que nos tem incomodado, seria o nosso inimigo se quisermos colocar nesses termos. Eles atuam em todos os níveis com o ímpeto de transformar toda a atividade humana numa quantidade de homens-hora trabalhadas voluntária ou involuntariamente no processo produtivo. E em muitos casos, de forma não remunerada, como veremos a seguir.

No presente texto, o que nos interessa é analisar o fluxo de informação e energia de uma nova e específica configuração da indústria cultural. Nos dois textos anteriores, delineamos os processos básicos do controle e seus aspectos no mundo informacional (digitalizado), assim como indicamos, dentro da lógica do controle/descontrole, como, na cultura, se dá em linhas gerais essa nova configuração. Assim, a dinâmica de controle cultural e aproveitamento do descontrole por ela gerado foi inicialmente esboçada, mas sem levar em conta agenciamentos nos quais os grupos de contestação (movimentos sociais e grupos ditos “ativistas”) atuando profissionalmente num circuito de captura de conteúdos e também sem levar em conta com o devido cuidado como o trabalho voluntário e involuntário é cotidianamente apropriado através da digitalização e circulação de desses conteúdos. Nisso, o papel do/a86 ativista como digitalizador e reconhecedor de padrões culturais nem sempre é necessário, mas é fundamental quando se trata de buscar conteúdos que dificilmente serão digitalizados por conta das comunidades de onde se originam. No entanto, mesmo as capturas que necessitam do trabalho de ativistas quanto as que são feitas diretamente pelos/as detentores/as dos objetos culturais se inserem num mesmo circuito e portanto serão tratadas conjuntamente.

Por isso, convém agora detalharmos com um pouco mais de calma tais processos. Grosso modo, analisaremos o seguinte modelo esquemático como exemplo de circuito de captura:

                                                              ------------------<--------------------
                                                             |                                       |
 instituições  ---> projetos de inclusão digital ---> grupos ativistas ---> comunidades <------------|
 financiadoras            e produção cultural                |       (sociedade civil organizada)    |
   ^   ^                                                     |                  |                    |
   |   |                                                      -------->  criação de produtos         |
   |    ----<---- lobbystas atuando na                                          |                    |
   |            captação de mais dinheiro <------------------------- manutenção de um grande         |
   |                                                                banco de dados de produção --->--
   |                                                               cultural em licenças abertas
   |                                                                            |
   |                                                                            |
    --------<-------------- indústria cultural <--------------------------------

6.1 Genealogia

Mas no que consiste a apropriação do trabalho voluntário e ativista? Por que o meio digital é fundamental hoje para entender tais processos de captura?

Para responder essas e outras perguntas, teremos que fazer uma pequena genealogia da participação da sociedade na elaboração de conteúdos digitais até o momento em que ocorre a descoberta dessa dinâmica pelas empresas, iniciativas governamentais e do terceiro setor. Para isso, centraremos inicialmente o debate no campo do software, onde uma dualidade se estabelece entre o software livre e o aberto e que no fim das contas é a discussão entre a ajuda mútua, o cooperativismo como filosofia e esse novo modelo de negócios que também mobiliza a energia de voluntários/as cuja análise será objeto do resto deste texto. Certamente poderíamos escolher momentos anteriores para o nosso recorte, períodos onde o embate de forças sociais levaram a aprimoramentos do sistema capitalista. No entanto, escolhemos propositalmente o momento em que tais contendas chegam no campo do digital (e na sociedade pós-industrial) tanto por se tratar de uma apropriação emblemática, quanto pela falta de crítica e discussão sobre ela.

Assim, tal retrospectiva remonta ao início da era da informática moderna, quando os computadores eram usados basicamente no meio acadêmico, corporativo e militar. Havia poucos computadores no mundo e seu uso era bem restrito, dado seu custo, tamanho, consumo de energia e pelo próprio estado da computação da época, onde poucas aplicações práticas eram vislumbradas (em relação a hoje, digamos). Nessa “era de ouro” da computação, a noção de autoria dos programas de computador e a própria idéia de direito autoral eram muito fracas. Os programadores distribuíam seus códigos entre si da mesma forma como o meio acadêmico até certo ponto possui um compartilhamento de pesquisas, dados e resultados87.

Mas, a partir do momento que a indústria da informática passou por um barateamento dos computadores, a venda de softwares passou a compor uma importante fatia dos seus lucros. Por isso, ela passou a adotar o modelo de propriedade intelectual já presente em outros setores produtivos, modelo aliás que sempre surge juntamente com o estabelecimento dos monopólios de distribuição de conteúdo. Essa mudança se caracterizou como um curioso estágio de escassez, onde teoricamente as pessoas poderiam emprestar seus programas mas na prática os contratos que os programadores/as assinavam passavam todo o direito de propriedade sobre o código para as empresas. Isso criou o modelo do o software fechado, no qual cada empresa deve ter seu grande staff de programadores/as que deve criar os programas praticamente do zero.

Em resposta à essa iniciativa de restrição de acesso e uso da informação, surge em meados de 1984 o conceito de Copyleft, a Fundação do Software Livre e o Projeto GNU, encabeçados pelo programador Richard Stallman e tendo como objetivo a criação dos chamados softwares livres, de modo que a forma de colaboração inicial na produção de software pudesse persistir.

Durante os anos 80 e até o fim dos anos 90, os projetos de software livre estavam restritos ao meio acadêmico e em pequenos guetos de desenvolvimento, onde em geral se adotava o modelo da “catedral”, no qual o programador, detentor dos conhecimentos necessários, se mantinha isolado na sua torre de marfim onde escrevia seu código, sem compartilhar seu processo de desenvolvimento com outras ou muitas pessoas88. Se hoje tal atitude parece pouco natural e até elitista, basta imaginar que na época a internet era embrionária e as formas de comunicação e transferência de dados eram muito mais primitivas do que hoje. Essa forma de desenvolvimento nada mais era do que uma réplica do modo no qual os/as pesquisadores das universidades conduziam suas próprias pesquisas.

Muito bem. No início dos ano 90 o universo do software livre já era habitado por uma gama enorme de programas: quase tudo o que era necessário para operar um computador usando exclusivamente software livre já existia, com a exceção da parte principal: o “kernel”, isto é, o núcleo do sistema operacional (resumidamente, isso deveu-se em grande parte pelo fato de que o projeto GNU estava e ainda está desenvolvendo um kernel experimental, tão complexo e teoricamente desafiador que ele ainda nem é usável)89.

Nessa época (início dos 90) entra em cena um estudante de computação finlandês chamado Linus Torvalds que, durante cerca de um ano, escreve por conta própria seu próprio núcleo do sistema operacional, chamado de Linux. Após esse período, ele o lança na “internet” da época. Apesar de não ter se tratado de uma peça de software excepcional, o Linux foi de certo modo bem recebido pelas comunidades de programadores, que prontamente começaram a pedir alterações no código ou mesmo enviar alterações para serem incluídas no Linux. Linus se mostrou extremamente responsivo e atendia aos pedidos de alteração e inclusão e com isso mobilizou toda uma comunidade de desenvolvedores e usuários de software em torno do desenvolvimento do Linux. Nesse momento, Linus passa não apenas a ser um mero programador, mas também um gerenciador de uma comunidade e de um processo de desenvolvimento. Linus passou a coordenar uma rede de desenvolvimento de literalmente milhares de colaboradores/as que enviavam modificações do código fonte do Linux de forma voluntária, livre e espontânea.

Com esse modelo de agenciamento do esforço colaborativo, a evolução do Linux foi a mais rápida da história dos sistemas operacionais (e quiçá de toda a programação). A partir desse momento esse modelo de desenvolvimento passa a chamar a atenção do mundo corporativo90, que começa a remunerar as figuras chaves do desenvolvimento do Linux e também de outros projetos de software livre, passando então a pautar boa parte do processo de evolução dos programas.

E foi assim que surgiu a primeira (se não primeira, a mais significativa) forma de captura e apropriação digital de processos sociais: a utilização da força de trabalho voluntária como forma de extração de valor e produtividade por empresas. Especificamente, a exploração indireta de comunidades voluntariamente mobilizadas em torno de um desenvolvimento em comum (no nosso exemplo, o software Linux).

A primeira vantagem dessa comunidade em relação ao modelo do desenvolvimento fechado é que o feedback do “produto” vem de forma mais efetiva, já que em grande parte é a própria comunidade de usuários/as e desenvolvedores/as que envia pedidos, relatórios de uso e de defeitos. A segunda vantagem é o trabalho não-remunerado de grande parte da equipe de desenvolvimento e teste. A terceira vantagem é a inexistência de restrições de uso comercial da maior parte dos bens criados nessas cadeias produtivas.

No caso do Linux, um pool de empresas interessadas numa dada linha de desenvolvimento passou a remunerar as pessoas de postos chaves (Linus Torvalds e outros desenvolvedores importantes) e com isso tais empresas acabaram dando o tom do desenvolvimento. Por exemplo, hoje não se fala mais tanto em adaptar o Linux para computadores antigos, mas sim em adaptá-lo às novas tecnologias e necessidades da informática de ponta91.

O Linux foi talvez apenas o primeiro (ou um dos primeiros, ou um dos principais) caso de captura de trabalho coletivo voluntário92 realizado nas redes digitais e tem sua relevância por ser um grande divisor de águas. Muitos outros exemplos similares de capturas existem, como veremos a seguir. O que deve ficar enfatizado é que, uma vez que no ambiente informacional o produto principal do trabalho passa a ser imaterial, novas dinâmicas de exploração e extração de produtividade se somam às formas de exploração “tradicionais” existentes no trabalho onde o produto considerado como principal é material.

6.2 O Open Source versus o Free Software

Antes de prosseguirmos, é importante contextualizarmos ideologicamente quais as diferenças de valores entre uma pessoa que atua voluntariamente nesse tipo de cadeia produtiva e as iniciativas de captura dos processos e bens produzidos. Tal diferenciação é fundamental para o entendimento de como os discursos de colaboração são apropriados pelo capitalismo.

A principal iniciativa de captura de comunidades de software livre (e também de lobby nas empresas) é a chamada Open Source Initiative (Iniciativa do Código Aberto)93, que adotou o termo “open” (aberto) em detrimento do “free” (livre) primeiramente para não assustar o meio corporativo, naturalmente indisposto a compartilhar seus bens, mas também porque defende o modelo “aberto” de negócios94.

O mentor de tal movimento, Eric Raymond, vislumbrou que o poder das comunidades de usuários/as e desenvolvedores/as de software melhoraria muito o modelo de negócios das grandes empresas de software e hardware. Em seu célebre texto “A Catedral e o Bazar”95, Raymond afirma que o modelo tradicional de desenvolvimento de software (seja ele livre ou proprietário) é o dos construtores de catedral: poucos arquitetos e construtores projetam e executam a edificação. O desenvolvimento de softwares como o Linux, ao contrário, seguem um modelo mais parecido com a dinâmica de um bazar ou de uma feira livre, onde todas as pessoas trocam partes do código fonte e se ajudam mutuamente.

Raymond chega inclusive a criticar o próprio modo como os desenvolvedores da Free Software Foundation escreviam seus programas, pois ele, mesmo produzindo software livre, é mais semelhante à construção de catedrais do que com o modo de ser dos bazares. Mas, quando faz isso, Raymond não está criticando apenas o isolamento dos programadores ou sua falta de vontade de se relacionar com a comunidade, mas sim todo o modo de produção de software dos anos 80 (seja ele livre ou proprietário), modelo este que foi quebrado com o advento do Linux, quando Linus Torvalds, um programador mediano, inaugurou um novo modo de desenvolvimento ao incorporar com sucesso e rapidamente as modificações ao seu software propostas por terceiros/as96.

“A Catedral e o Bazar” é o texto fundador da iniciativa Open Source. Com ele, Raymond buscou aproximar o mundo corporativo – este sempre longe do Free Software principalmente pela sua conotação de gratuidade – mostrando que as empresas poderiam lucrar muito com o modelo aberto de desenvolvimento. De um lado, a iniciativa do Open Source buscou aproximar a comunidade do software livre (usando para isso o discurso clássico do Free Software) e por outro ela buscou aproximar as empresas, tendo bastante sucesso em ambas as empreitadas.

Em resumo: o software livre surgiu como um contraponto ou mesmo uma luta contra o mundo corporativo que insistia no modelo de desenvolvimento e distribuição fechado. Mas, a partir do momento em que as novas formas de gerenciamento e desenvolvimento de software livre passaram a apresentar vantagens para o mercado corporativo, este passa a adotá-lo. No caso, a vantagem é uma grande comunidade voluntária trabalhando gratuitamente numa linha de desenvolvimento pautada pelas empresas, uma vez que elas remuneram as figuras chave do processo. A diferença entre o Free Software e o Open Source é que o primeiro é uma ideologia e o segundo um modelo de negócios.

O Open Source é um modelo de negócios pois insiste que deve ser adotada a forma de desenvolvimento do “bazar” pois nela, além da comunidade fornecer sua força de trabalho gratuitamente para a construção de um produto, este será de maior qualidade pois passará por muito mais testes (e conseqüentemente sofrerá um maior número de correções) do que os softwares desenvolvidos como “catedrais”. Ou seja: trocando em miúdos, o Open Source defende a lógica neoliberal da eficiência: que o mais eficiente seja utilizado.

Já o Software Livre é a filosofia de colaboração e compartilhamento que parte de idéias iluministas de que o conhecimento é um bem não-rival (isto é, o fato de uma pessoa transmitir conhecimento para outra não implica que a primeira perderá este conhecimento) e que portanto não há motivos para não compartilhá-lo, mesmo porque seu compartilhamento ajuda no desenvolvimento humano.

Da boca para fora, os evangelistas do Open Source pregam para a comunidade a adoção dos valores do Software Livre, enquanto que para as empresas o discurso é da eficiência e lucratividade desse novo modelo de negócios.

A apropriação energética (da força de trabalho) e simbólica (do discurso) realizada pela iniciativa do Open Source surgiu num momento em que a indústria do software começou a ser abalada financeiramente pelo surgimento do software livre. Mas, de forma surpreendente, o capitalismo soube se apropriar do Free Software e dele extrair valor.

Essa forma de captura do trabalho voluntário (a apropriação energética) e da ideologia (a apropriação simbólica que, no caso, é o discurso da colaboração e do acesso aberto) hoje assumiu proporções inimagináveis em outros tempos e seu perigo principal reside no fato de não ser óbvia97. Um exemplo interessante de captura se dá quando, por exemplo, uma pessoa envia para uma empresa a descrição ou a resolução de um problema referente a um dado produto (como por exemplo um software); no caso, a empresa está sendo ajudada de forma gratuita. Podemos até nos arriscar e dizer que há uma nova forma de extração ou mesmo uma nova forma de mais-valia em tais processos.98

6.3 Bancos de cultura gratuita

Se entendidos como procedimentos ou descrição de procedimentos, software e objetos culturais são de natureza equivalente. No entanto, é consideravelmente mais difícil escrever um software do que outros objetos culturais. Mas, da mesma forma como ocorre com o software, o mercado cultural também passa por uma crise financeira desencadeada pela dita “pirataria” e pelas novas tecnologias de produção cultural – câmeras digitais, mini-gravadores, computador pessoal, etc. Crise que, diga-se de passagem, foi um tiro no pé dado pelo próprio complexo eletroeletrônico-cultural99.

O importante aqui nos atermos às conseqüências notadas pelo advogado norte americano Lawrence Lessig a respeito da

  1. Equivalência entre software e demais objetos culturais.
  2. Crise que o capitalismo sofreu com o advento do software livre e a sua solução através da adoção do modelo Open Source.
  3. Da crise semelhante que a indústria cultural vem passando.

Percebendo como a indústria de software solucionou o impasse criado pelo software livre e percebendo que não apenas o software é um dado cultural mas também o é o seu processo de produção, Lessig criou100 o movimento Cultura Livre aos moldes da iniciativa do Open Source. Em seu livro homônimo101, Lessig observa que, apesar da maioria dos bens culturais deixam de produzir valor na indústria após cerca de cinco anos do seu lançamento (isso valendo para filmes, livros, música, quadrinhos, etc), os direitos autorais sobre qualquer obra dura mais de 50 anos102. Em sua opinião, as obras culturais mais antigas (com mais de cinco anos) sofrem sérios riscos de preservação pois os detentores dos seus direitos raramente relançam novas edições mas ao mesmo tempo não permitem que terceiros também relancem. Lessig constata então que tais bens culturais estão fadados ao desaparecimento se suas poucas cópias existentes forem perdidas. Além disso, Lessig defende que, se a reprodução e a alteração de tais obras estivessem autorizados a terceiros, muito provavelmente o mercado se encarregaria não apenas de reproduzi-las (com isso gerando não apenas renda mas também contribuindo para com a preservação desses bens) mas de usá-las como base para novos objetos culturais.

Lessig, de tendências neoliberais, usa tais argumentos para, primeiramente, defender a flexibilização dos direitos autorais e em seguida para lançar um conjunto de licenças (chamadas de Creative Commons) com o intuito de, assim como o software livre se baseou num conjunto de licenciamento próprio, incentivar a produção de cultura que seja desde seu princípio legalmente “livre” para ser reproduzida, modificada e eventualmente comercializada.

A defesa da mudança dos direitos autorais não é nova. A diferença do Creative Commons é que ele defende a flexibilização, e não a destruição, dos direitos autorais. A destruição dos direitos autorais (assim como toda a propriedade intelectual) é uma luta da esquerda que envolve desde a quebra de patentes de remédios até a liberação total de todos os bens informacionais para o domínio público – aliás, o compartilhamento de informações entre as pessoas sempre foi uma atividade espontânea para quem possuía formas e dispositivos de cópia e modificação. Lessig, ao contrário, defende a flexibilização dos direitos autorais porque – analogamente ao Open Source – oferece abertamente suas idéias para os grandes conglomerados da indústria cultural. Ameaçadas pela crescente onda de “pirataria” dos softwares peer to peer103 e dos CDs e DVDs vendidos pelos camelôs nas ruas das cidades, as multinacionais da cultura estão ansiosas por novos modelos de negócios que possam resgatar de algum modo os exorbitantes lucros que tinham no passado. Para elas, Lessig propõe a flexibilização da propriedade intelectual como forma de transformar a própria produção mercantil de cultura de uma catedral para o bazar e de alguma forma recuperar sua lucratividade, como veremos a seguir.

A indústria cultural, tradicionalmente orientada ao “modelo de construção de catedrais”, mantém um grande staff de artistas e produtores para a criação dos seus bens, estes posteriormente lançados no mercado em grandes tiragens – sejam de filmes, de álbuns ou livros – na esperança de uma boa vendagem e uma boa margem de lucro. Tal lógica aposta em grandes investimentos num portfólio pequeno de artistas, escritores e cineastas como requisitos para grandes retornos. Em outras palavras: apostam no modelo de negócios da indústria de massa104.

Em tal modelo, o aporte de investimentos varia de acordo com a indústria, mas a lógica da massa ou do “público alvo” é a mesma: filmes tem um custo de produção alto, então não é possível lançar mão a cada temporada de um leque muito vasto de filmes, pois nem todos eles arrecadarão o suficiente para superar seus custos. Já na música e na literatura, o investimento de produção é muito mais baixo e por isso tanto a experimentação pode ser maior quanto o portfólio de artistas de uma mesma gravadora pode ser bem amplo: os poucos artistas com boa vendagem certamente cobrirão os custos de produção dos de baixa vendagem. Mesmo assim, os altos custos com propaganda tendem a limitar o número de artistas e autores num portfólio. Comum em todas as mídias que sigam esse modelo é o fato do sucesso ser sempre um dado inesperado: não adianta muito realizar pesquisas de mercado para saber qual será o “som do verão”, algo que só é possível saber efetivamente lançando um álbum e vendo se ele é eleito pela massa do público alvo se ele será ou não o hit do momento.

Justiça seja feita105: grande parte do sucesso mainstream é determinável por conta do próprio sucesso das técnicas do marketing moderno (jabaculê para repetição à exaustão, mensagens subliminares, mensagens inconscientes, etc). Mas, mesmo assim ainda algo foge à técnica de dominação mercadológica da cultura e a “open culture” tem sido usada como tentativa de tamponar essa válvula de escape. A visão das vantagens exploração da cauda longa, por exemplo, não é compartilhada por toda a indústria cultural (veja por exemplo uma crítica da sua realidade – Slashdot (2008c); Elberse (2008) –, o que pode indicar o quanto novos modelos de negócios ainda são embrionários e o quanto muitos deles podem se revelar como inovações não tão lucrativas. É importante diferenciarmos os discursos de defesa de determinados modelos (o discurso do lobby, que envolve a apropriação simbólica) de captura e sua real eficácia (que envolve também a apropriação energética). Neste ponto, afirmar demais sobre a validade, a viabilidade e a realidade de tais modelos de captura é ainda muito complicado. Estudos quantitativos complexos precisam ser realizados e é na ausência dessa conjunção com o empirismo que, nestes textos, temos misturado os discursos sobre a captura com a prática da captura, mesmo porque a coleta desse tipo de discurso já constitui um tipo de empirismo e também por eles comporem retratos significativos do espírito do tempo. Pedimos contudo, critério do/a leitor para tentar diferenciar o discurso dos lobistas (que de práxis contém a captura simbólica) das capturas energéticas/desejantes e, principalmente, dos lucros delas provenientes, nem sempre reais (o discurso de certos modelos de captura podem sim serem hype e bolhas financeiras).

Mesmo com toda essa dificuldade gerencial envolvida, o modelo de negócios de massa gerou prosperidade para a indústria cultural durante muito tempo. Até o momento em que a tal da “pirataria” provocou a queda da taxa de lucros não só das grandes gravadoras mas também da indústria cinematográfica. Surge então o movimento da Cultura “Livre” e seus defensores, que pregam a adoção de modelos de negócios baseados em licenças livres Creative Commons como alternativa de sustento da indústria cultural.

Se visto apenas como um conjunto de licenças livres, o Creative Commons aparenta ser apenas um conjunto de licenças visando a flexibilização dos direitos autorais, mas esta é apenas uma face que, se tomada isoladamente, não nos diz muito sobre como funcionaria tal modelo de negócios. O Creative Commons não incentiva apenas o licenciamento flexível de conteúdos culturais, mas também a criação e manutenção de grandes acervos de cultura distribuída sob tais licenças. São esses acervos – os bancos de dados – que realmente interessam para o estabelecimento de um novo modelo de negócios: o banco de dados cultural não é apenas uma forma de uma empresa obter gratuitamente objetos culturais enviados voluntariamente como uma forma de identificar e isolar a dinâmica social envolvida no processo de recomendação e construção de fama e notoriedade que analisaremos adiante106.

Em resumo, Lessig fez à cultura em geral o que Raymond fez com o software: utilizou um discurso de compartilhamento e colaboração já existente e o transformou num modelo de negócios que pode salvar a indústria cultural, que passará de mera produtora e vendedora de conteúdo para detentora de um bancos de dados de produções culturais realizadas não apenas pelo seu staff mas pela própria comunidade, de forma análoga à linha de desenvolvimento dos softwares Open Source107.

Não podemos, contudo, atribuir responsabilidade exclusiva pelas evolução das tendências ao papel dos seus ideólogos: Open Source não surgiu exlusivamente pela atuação de Raymond e nem a dita “Cultura Livre” apenas por causa do esforço de Lessig. Mesmo o software livre poderia ter surgido sem Stallman (mas certamente teria sido diferente)108, pois este é mais produto das emergências de um sistema de produção do que do esforço de poucas pessoas. Raymond e Lessig são lobistas que detectaram antecipadamente as implicações dessas emergências. Se escolhemos centrar nossa genealogia em figuras-chave, não foi por tratá-las como centrais nesses desenvolvimentos, mas sim para ressaltar os discursos presentes nesses modos de produção.

A questão109 do Open Source e do Creative Commons é não-trivial dependendo do ângulo de análise. Se partirmos dos ideólogos e de suas opiniões, realmente a questão fica complexa e controversa. Porque o espectro desse monte de ideologia é realmente muito diverso. Veja por exemplo, o Lessig tem um ponto de vista bem liberal, é do Creative Commons mas ao mesmo tempo está na diretoria da Free Software Foundation, que teoricamente é mais ativista. Agora, se tentarmos extrair algo vendo como efetivamente ocorrem essas relações entre empresas, terceiro setor e sociedade, as coisas parecem se simplificar. Podemos inclusive assumir inicialmente e por simplicidade, que o terceiro setor e a academia são bons, incluindo Eric Raymond, Lessig, Ronaldo Lemos, todo mundo. Vamos supor que todos sejam bem intencionados. Aí a questão que sobra é o quanto as empresas se apropriam dessas iniciativas e o quanto de lucro isso traz pra elas. Não se pode dizer que todo o grande projeto de software livre ou aberto de grande porte está mancomunado com o capital, mas parece que de fato descobriram um novo modo de ganhar dinheiro e estão sim se apropriando do software para esse fim. Essas que as empresas contribuem muito para o Open Source, mas não é pensando na comunidade, é pensando nos consumidores. Uma coisa é criticar o produto final (o kernel, o gcc, o rpm110) e outra é o modo de produção do software, quem paga e quem ganha. Aliás, a questão de se tais figurões do Open Source e do Creative Commons são intelectualmente honestos ou não chega até a ser irrelevante. A própria personificação de tais iniciativas e movimentos nesses estudioso parece ignorar que seria uma questão de tempo para que, na ausência deles, outros tomassem a dianteira como bastiões dos novos modelos de negócios.

6.4 Crowdsourcing

Os conglomerados multinacionais por sua própria natureza desejam se perpetuar e resistir às mudanças tecnológicas e sociais e assim precisam sempre estar prontos para inovar e alterar seus modelos de negócios.111 Para tal lançam mão tanto de subsidiárias especializadas em novos ramos da economia como criam novos produtos e serviços. Invariavelmente, tais inovações podem levar a novas crises para essas próprias empresas (o que foi exemplificado com a crise do complexo eletroeletrônico-cultural com o advento das tecnologias portáteis de produção, edição e transmissão cultural) e levá-las a adotarem modelos de negócios alternativos ou então mudarem de ramo. O que está em curso na indústria cultural é a adoção de novos modelos de negócios e uma mudança de ramo de atuação: do modelo de massa passam ao modelo do personalizado112 e de uma indústria puramente produtora e vendedora de cultura para uma indústria manipuladora de bancos de dados culturais.

O investimento em bancos de dados não é o único tipo de modelo de negócios possível para uma indústria cultural aberta, mas é o que até agora tem sido mais explorado, como veremos a seguir. Nem a abordagem do Creative Commons é a única possível para bancos de dados de captura – muitos bancos de dados fazem, por exemplo, com que os usuários cedam seus direitos autorais no momento da publicação, constituindo uma forma de captura ainda mais agressiva – mas mais uma vez nos parece ser a iniciativa mais emblemática a respeito de capturas de bens culturais, já que propõe abertamente a adoção de novos modelos de negócios.

Enfim, a apropriação energética e simbólica se estendeu, primeiramente, no campo do software para, em seguida, se estender para o modelo dos bancos de dados de cultura ou de qualquer outra coisa. É a mesma apropriação que um sítio com tecnologia Web 2.0 ou um projeto de produção cultural através da informática faz com as pessoas, como veremos adiante.

O envolvimento da sociedade civil - das “comunidades” ou de pessoas, se tomadas isoladamente - na cadeia produtiva da indústria dos bancos de dados é ainda mais assustador. A indústria da informação inventou um novo modelo produtivo, no qual a sociedade alimenta gratuitamente inúmeros bancos de dados, de forma que a energia das pessoa é fornecida de bom grado no ciclo de produção.

No embalo da flexibilização da força de trabalho promovido pelo capitalismo da era pós-industrial, que incentivou a terceirização (outsourcing) da prestação de serviços, o modelo de negócios dos bancos de dados promoveu o chamado crowdsourcing, que é a a transferência da prestação de serviços não para uma empresa ou prestador específico, mas sim para pessoas genéricas de uma dada comunidade. Nesse sentindo, o crowdsourcing é uma espécie de “quarteirização” de um serviço. No caso dos bancos de dados, o crowdsourcing é usado para que as pessoas transfiram informações voluntária ou involuntariamente de forma não-remunerada.

Para que as comunidades – sejam de software, de cultura ou de qualquer outro tipo de informação – manipulem gratuitamente o conteúdo de bancos de dados corporativos, é preciso que elas assim o desejem. Noutras palavras, é preciso que tais bancos de dados ofereçam algo atrativo ou então que seu uso seja necessário pelas pessoas. Esses bancos de dados precisam, portanto, de interfaces cativantes. Tal conjunto de ferramentas que mantém as pessoas cativas a bancos de dados corporativos é chamado, quando presentes na Internet, de Web 2.0113.

O termo Web 2.0114 se refere a uma série de características e práticas que possibilitam o fornecimento de conteúdo por parte dos usuários de um banco de dados para que se “tome a rédea” (harness) da produção informacional anteriormente dispersa de um grande número de pessoas. O que se chama de “Web 2.0” é um conjunto de procedimentos de captura do poder não apenas desse tal de “conhecimento coletivo”, mas dos próprios agenciamentos coletivos que trafegam pela internet115.

No primeiro boom da internet, a World Wide Web permitiu que conexões entre documentos fossem estabelecidas com um mínimo esforço. Essa conexão desde cedo refletiu tanto uma relação entre assuntos e textos quanto entre pessoas. Nessa época, porém, praticamente todo o conteúdo de um sítio corporativo era fornecido por um staff especializado: jornalistas, webmasters e consultores em geral. Quando, porém, o conteúdo adicionado pelo enxame de usuários de um sítio se mostrou também passível de extração de valor, muitos portais na internet começaram a basear suas principais funcionalidades nas potencialidades representadas pela massa de usuários. Portais de conteúdo – que nada mais são do que a manifestação gráfica do motor lógico de um banco de dados – cada vez mais passaram a ter seu conteúdo (e a catalogação deste conteúdo) produzido e manipulado pelos seus usuários.

Hoje se fala116 de participação independente conceituando figuras como o/a “jornalista cidadão” como se fosse um empreendedor do SEBRAE, isto é, a lógica não é a da mudança social, mas sim a da inovação. O Rupert Murdoch é dono da Fox News e do MySpace117. Ou seja, praticar “mídia independente” no MySpace não escapa do paradigma tradicional de controle dos meios. Muito projetos “de base” (como o Indymedia118, por exemplo) foram os locais onde esse poder da “inteligência coletiva” na Web emergiu. Empresas de comunicação e tecnologia da informação sacaram a tendência e capturaram o poder através da tal Web 2.0. Se houve um enfraquecimento do Indymedia nesses ultimos tempos, atribuir esse problema apenas a eventuais crises internas no projeto é ignorar o efeito de médio prazo da captura 2.0: o Indymedia está tão fraco porque o Orkut119, o MySpace, o Youtube e similares estão fortes no que se refere à intenção de uso político que as pessoas fazem dessas ferramentas, ou seja, se houve um esvaziamento, ele foi no sentido de que as pessoas passaram a usar maçicamente ferramentas comerciais. E é mais complicado ainda, porque hoje há uma tendência das pessoas que mantém serviços livres de querer implementar recursos de Web 2.0 em sua estrutura pra atrair de volta os/as usuários perdidos para as ferramentas comerciais. Mas, nessa tendência, acabando por adotarem alguns paradigmas da inovação e não da mudança social que, se em princípio compartilham de alguns pontos comuns (busca pelo novo e pela mudança), tem pressupostos diferentes, meios diferentes e finalidades distintas.

É inegável a eficácia da Web 2.0 e do que os sítios de redes sociais conseguem fazer ao aproveitarem informações que todo mundo manipula em atividades banais (e que normalmente se perderiam) num grande sistema que pode ser publicamente acessado. Mas esse aproveitamento é a apropriação da energia das pessoas em micro-escala, porque a apropriação chega no clique do mouse que coloca algum texto numa tag dum sítio que está a serviço do capital. A Web 2.0 consiste no design de aplicações orientadas ao aproveitamento do trabalho voluntário e involuntário (mas em geral sempre não remunerado) na construção de referências, classificação, modificação e adição de conteúdo.

Um exemplo para toda essa análise é o caso do Youtube, que não produz nada mas que praticou uma espécie de mais-valia absurda sobre sua base de usuários120, que alimentaram um banco de dados posteriormente vendido por cerca de 1,5 bilhões de dólares. O conceito clássico de mais-valia implica a existência de algum tipo de vínculo empregatício. No caso dessa mais-valia 2.0, não é necessário vínculo nenhum: o trabalho (voluntário ou involuntário, mas nunca assalariado) é expropriado sem o estabelecimento de uma relação classe trabalhadora / classe patronal / classe consumidora facilmente identificável121

Trata-se então de uma iniciativa de monopolização, conforme aponta o artigo Infoenclausura 2.0122:

A missão da bomba de investimentos na Web 1.0 era de destruir os serviços de provedores independentes e colocar de volta as grandes e ricas corporações de volta no comando.

A missão da web 2.0 é de destruir o aspecto p2p da internet. Fazer você, o seu computador e a sua conexão de internet dependente da conexão a um sistema centralizado que controla sua capacidade de se comunicar. A Web 2.0 é a ruína de sistemas gratuitos peer-to-peer e o retorno de sistemas monolíticos de ‘serviços online’. Um detalhe notável aqui é que a maioria das conexões domésticas ou corporativas dos anos 90, os modems e conexões ISDN, eram sincrônicas - ou seja, iguais em suas capacidades de enviar e receber dados. Pelo próprio design, sua conexão te capacitava a ser igualmente um produtor e um consumidor de informação. Por outro lado, as conexões modernas DSL e à cabo são assíncronas, permitindo que você baixe informação rapidamente, mas suba devagar. Sem mencionar o fato de que muitos termos de seção de uso de serviços te proíbem de rodar servidores nos seus circuitos de consumidores, e podem cortar os serviços se você o fizer.

Esse tipo de rede é uma forma de fazer o egoísmo das pessoas trabalhar em função de uma estrutura maior, de um banco de dados construído involuntariamente. Ou seja, você não muda as pessoas nesse processo, elas continuam morosas, sem iniciativa e preocupadas apenas em resolver seus próprios problemas, mas o trabalho delas é egoisticamente somado até construir uma falsa coletividade, que é a abundância de informação mas que não foi erguida com a idéia de ajuda mútua ou com o ideal de “ajudar a seus vizinhos/as” com o qual a Fundação do Software Livre se funda, por exemplo. O próprio individualismo na Web 2.0 surge quando as relações sociais são traçadas de pessoa pra pessoa. Observa-se também esse individualismo nos novos instrumentos de comunicação instantânea: do Internet Relay Chat (IRC) aos “modernos” programas de comunicação instantânea e sistemas de contato pessoal, houve uma notável mudança do espaço comum persistente (como a sala de bate-papo) para o espaço privado das conversas pessoais e listas de contato. Não foi só a necessidade dos bancos de dados corporativos de mapear a conexão pontual entre seres humanos que forçou essa mudança, mas também o próprio discurso individualista predominante na sociedade.

Os grupos ativistas que julgam a Web 2.0 como algo que trará mudanças positivas no acesso à informação e à organização social estão enganados. É acreditar que, criando um sistema que facilite a troca de determinada informação, por si só mostre pras pessoas que elas podem se organizar de diversas maneiras e a partir disso modificar as relações sociais.

Nas redes sociais criadas pela Web 2.0 há uma falsa idéia de coletivismo. Não quer dizer todo mundo é amigo/a só porque você conhece alguém que tem não sei quem em sua lista de contatos.

Fora isso, há a questão da real mudança social que tais tecnologias promovem. São os sistemas é que devem determinar e viabilizar a organização social ou são as pessoas que devem determinar isso? Sistemas que pretendem uma dada organização social podem até funcionar, mas seria muito mais rico e representaria uma maior evolução e maturidade pras pessoas que participam se elas não precisassem de um banco de dados pra se organizar, se a organização viesse já de dentro delas.

6.5 Grupos ativistas e a inclusão digital

Dentro das iniciativas voltadas à inclusão digital e à produção cultural, uma série de relações se estabeleceram como um circuito de captação de recursos através da concentração de de conteúdo construído por grupos de ativismo midiático e pela sociedade civil.

Nessas relações, ativistas se associam à iniciativa governamental ou ao terceiro setor para participarem de projetos de inclusão digital promovidos por tais instituições e que envolvem:

  • O incentivo ao uso das novas tecnologias computacionais e do software livre para a produção cultural, que permitem a composição e a reprodução de conteúdo multimídia de forma simples e barata.
  • A distribuição de recursos financeiros e tecnológicos para comunidades de baixa renda, uma forma de pulverização de capital, defendendo uma descentralização da produção cultural, que tradicionalmente está centrada em grandes eixos regionais e em grupos já estabelecidos que detém os canais institucionais para obtenção de verba.
  • O incentivo à generosidade intelectual e à formação de redes colaborativas para alimentarem um banco de dados da produção cultural oriunda das comunidades patrocinadas pelo projeto.

No entanto, apesar do discurso inclusivo e do apelo para a mudança social, esses projetos estão muito mais próximos de cumprir uma importante função à indústria cultural e a um novo modo de produção capitalista, o que é perceptível quando passa-se a analisar o projeto a partir da cadeia produtiva na qual ele se encaixa.

A indústria cultural sempre busca a novidade e passa por um grande momento de estagnação. Bancos de dados em licenças abertas que contenham amostras da cultura dos rincões constituem material de pesquisa de certo modo gratuito para a indústria.

Como contrapartida pelo fornecimento de recursos à comunidade, esta oferece seu patrimônio cultural e sua força de trabalho para o banco de idéias da indústria do entretenimento. Para a construção desses bancos, a atuação de ativistas na aproximação de grupos sociais junto à comunidade tem sido fundamental.

O que está sendo questionado aqui não é a o vislumbramento desse campo pelos/as ativistas como alternativa de emprego, mas sim o “dote” que eles/as acabam entregando como contrapartida e o uso do mesmo como produto a ser vendido para as instituições financiadoras desse tipo de projeto. Esse dote é composto inicialmente pelo currículo da pessoa e a história dos grupos que ela participa, que serão usado como parte da propaganda destes projetos, quando estes afirmarão que tem inserção social e que contam com um staff participante de movimentos sociais.

Mas a principal componente do dote é a energia empregada pelos/as ativistas ao trabalharem nesse tipo de projeto. Por serem pessoas já engajadas na mudança social, os/as ativistas tem uma propensão a trabalhar com muito afinco com a questão da inclusão digital e com a produção cultural. Assim, compensa muito mais para um projeto governamental ou do terceiro setor empregar mão de obra ativista do que técnicos/as especializados, pois estes últimos trabalhariam somente o necessário e sem tanto envolvimento.

Assim, os grupos ativistas, quando trabalhando dentro desse maquinário, estarão entregando gratuitamente parte de suas energias para esse tipo de projeto. Energias que de outro modo estariam se canalizando para os seus próprios projetos e para a mudança social efetiva.

Fora isso, também há um esforço enorme para colocar ativistas funcionando junto com essa engrenagem de financiamentos e captações, o que também toma um tempo precioso desses coletivos, tempo que poderia ser usado de outra forma.

Eis a inteligência desse sistema, ele não neutraliza as forças de oposição, é mais eficiente, canaliza suas energias para sua própria reinvenção, pois enquanto os grupos estiverem pautando a colaboração (seja ela produção de software, de rádio, de encontros) pelo ritmo do capital, eles estarão perdidos em sua busca por real mudança. Enquanto os grupos acharem que precisam entrar em todos os editais, participar de todos os eventos, acompanhar todas as inovações tecnológicas do mercado, eles estarão perdidos. Ou melhor, estarão ‘achados’, estarão no lugar que interessa à máquina capitalista.

6.6 O circuito da produção cultural

Os principais elementos do diagrama proposto no início deste texto foram apresentados nas seções anteriores. Podemos agora reuni-los para compor nosso esquema de entendimento aproximado do novo modelo de negócios baseado em tecnologias de captura como a Web 2.0 e no trabalho de grupos ativistas para integrar comunidades nessa dinâmica de produção. Os eventuais atores e elementos que ainda não foram apresentaram o serão agora.

Resumidamente, o software livre, as licenças abertas, os grupos ativistas, a sociedade civil, lobistas, instituições financiadores e indústria cultural se engajam num mesmo circuito produtivo: através de financiamentos, projetos de inclusão digital e produção cultural aliciam trabalho ativista voluntário ou remunerado para atuar em comunidades de tal forma que os resultados culturais obtidos na interação (produtos) sejam adicionados em bancos de dados (bancos de cultura) que podem ser utilizados tanto por lobistas para apresentá-los a mais linhas de financiamento como à própria indústria cultural como material de pesquisa para a criação de seus próprios bens culturais. Nessa cadeia, as comunidades também podem operar sem a intermediação dos grupos ativistas.123

6.7 A Geração Google e a ilusão do desenvolvimento

Antes de concluirmos, façamos um retorno à questão da participação de grupos ativistas (ou ativistas operando autonomamente) em tal cadeia. Não apenas pessoas mais novas no dito “ativismo” (ou que se intitulam como tais) mas também gente oriunda de outras experiências de militância na esquerda tem se envolvido mais e mais nos circuitos de captura e apropriação energética e simbólica da nova indústria cultural, seja por inocência, seja por oportunismo ou seja por convicção.

A título de simplicidade, contudo, descartaremos as hipóteses da inocência e do oportunismo e consideremos apenas o caso da convicção, não apenas por se assemelhar muito ao da inocência (afinal, inocência não é uma forma de convicção possuída por quem não imagina as implicações e conseqüências de suas ações?), mas também porque o circuito necessita da mobilização máxima dos esforços dos atores envolvidos (e para tal nada melhor do que a convicção).

Convictos de que sua participação em tal circuito contribui para uma melhoria no bem-estar geral, tais ativistas – que chamaremos de Geração Google124 – no fundo acreditam que seja possível uma relação ganha-ganha em nível mundial que resolva os problemas de todo mundo sem que nenhum conflito seja necessário, acreditam que software livre é bacana, eles são bacanas e portanto o mundo vai ser bacana com eles e vai mudar para a melhor125.

É a crença de que a tecnologia vai acarretar na mudança para o bem, [e] isso até subestima a capacidade dos movimentos sociais, acreditando que inevitavelmente a tecnologia da informação por si só levará a uma melhoria geral no nível de vida das pessoas, crenças semelhantes que predominavam no mundo antes das duas guerras mundiais: muito pelo contrário, hoje os sistemas de informação estão muito mais se encaminhando para centralização e para o controle total.

Existe também uma tendência de descentralização sempre, mas a maior parte dela surge pela própria contradição do sistema: criaram um mundo de cultura de massa com uma apelação extrema para o seu consumo e no entanto restringem ao máximo a reprodução de seus produtos a fim de garantir o máximo de lucro.

Em outras palavras, Hollywood produz uma pá de filme anualmente, é adepta de uma propaganda violenta mas ao mesmo tempo restringe o quanto pode as cópias dos seus filmes. O p2p é uma alternativa à distribuição hollywoodiana, mas na média [uma pessoa] continua consumindo a mesma coisa.

O desenvolvimento não segue caminhos aleatórios. Ele sempre vem acompanhado de uma carga ideológica pesada e tem uma série de forças atuando nisso, quanto maior a escala mais a parada é identificável. Hoje no Brasil o discurso político vigente é trazer um suposto desenvolvimento para gerar empregos e aí sim atingir o bem estar social. Agora, ninguém fala de reforma agrária, imposto sobre grandes fortunas, revisão da política de concessões e licitações ou mesmo mudanças mais radicais. Quando se fala em desenvolvimento, é desenvolvimento para quê? Para onde?

6.8 Conclusões

A apropriação energética é uma função básica do capitalismo: é a sua forma mais eficiente de mobilizar tudo para sua perpetuação. Nas atividades onde tal apropriação ainda não é imediata e involuntária, o capitalismo primeiramente se apropria dos símbolos e dos discursos que mobilizam energeticamente as pessoas. Seu objetivo é canalizar a energia disponível no planeta para sua constante expansão de fronteiras.

Apropriação energética do esforço aplicado na produção. Apropriação simbólica do que se produz. Apropriação energética da energia armazenada nos produtos. Apropriação simbólica dos significados da produção e dos produtos.

Quando dizemos “o capitalismo se adaptou” ou “o capitalismo se apropriou” nos referimos não à existência de uma instituição chamada “Capitalismo” que outorga permissões de relacionamento entre partes diversas. Dizemos, ao contrário, que o protocolo capitalista se atualizou. O capitalismo, se entendido como um ethos, é um protocolo de relacionamento entre sistemas informacionais (sejam estes pessoas ou computadores), mediado não apenas pelo dinheiro mas também por qualquer outro símbolo que propicie a acumulação de bens sobre a exploração alheia. Para que o capitalismo funcione, é necessário que haja uma boa adoção do seu protocolo. Uma nova versão do capitalismo apenas surge como atualização da anterior através do processo de apropriação. A apropriação capitalista é a expansão de fronteiras: onde antes predominavam relações não mediadas pelo protocolo capitalístico, agora estas são tratadas como novos modelos de negócios, algo que está notadamente ocorrendo às custas das comunidades.

Como fenômeno emergente de tal ethos, o capitalismo é um sistema que apenas se mantém ao se expandir: a necessidade de lucro (assim como a necessidade de lucros crescentes e n-ésimas derivadas) é a mola básica da inovação: se todos buscam lucrar (isto é, ter um balanço positivo), a vitória da concorrência é dada pela capacidade de cada instância capitalista de inovar no seu afã de lucro. E o novo, como veremos, ocorre predominantemente nos territórios ainda não capitalizados (decorre daí que as crises estruturais do capitalismo se dão nos momentos onde ele não conseguiu se expandir).

Nessa expansão, o capitalismo mais uma vez está conseguindo pegar aquilo que escapava a sua lógica e transformar em algo a favor da sua lógica. E a sinistrice é que, nesse capitalismo abstrato em que vivemos, o discurso, o conceito e a imagem são muito importantes para a produção de valor. Nessa, a geração Google tem um papel muito importante, expandem as fronteiras do capitalismo não apenas ao levarem o discurso para as comunidades mais tradicionais mas também inovando novas formas de produção de valor. E fazem isso achando que estão abrindo novas possibilidades de mundo, ou seja, achando que estão na resistência, seja porque adotaram o discurso e nele acreditam ou seja porque já entenderam o seu real significado e fizeram a escolha de entrar nesse circuito para conseguirem sua própria perpetuação.

O capitalismo de hoje não se impõe mais daquela maneira tosca do tempo das primeiras revoluções industriais, onde tudo ficava à mostra, onde toda a apropriação de força de trabalho ficava facilmente identificável. Hoje há todo um consenso e uma forma de apresentação que torna dificílimo o discernimento. Ninguém percebe mais a apropriação que ele faz das coisas que escapavam à sua lógica. Por isso tentamos, neste texto, criticar duas idéias:

  1. Que essa nova inclusão digital promovida pela apropriação energética e simbólica está a serviço do social; ela na verdade está a serviço do capital, basta ver quem financia esse tipo de sistema, são empresas que vivem da apropriação capitalista, não é filantropia. Falar que está a serviço da sociedade é lugar-comum no marketing moderno. Mesmo quando as iniciativas partem da esfera pública (projetos governamentais) eles também servem a esse modelo e também como uma função de tapa buraco desse modelo de sociedade ao invés de mudar as relações, até por que uma das suas características é legitimá-las.
  2. Que essas tecnologias são a chave da mudança social.

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  1. Elaborada a partir da versão original de 14/11/2008, cuja cópia encontra-se em https://sarava.fluxo.info/Estudos/ApropriacaoEnergeticaSimbolica.↩︎

  2. É importante notar que a própria noção de “ativista” como uma pessoa diferente das demais (as ditas acomodadas ou resignadas) que atuam no sentido da mudança social. A captura do conteúdo digitalado ocorre para ambos os tipos de atuação e portanto todos/as se tornam ativistas. Nossa diferenciação entre ativistas e não-ativistas permanece aqui apenas porque os/as primeiros atuam na intenção da mudança social e por isso não desejam que seus conteúdos sejam capturados, a não ser que sejam “ativistas de profissão”.↩︎

  3. Muitas vezes, quando alguém “hackeia” um sistema, o sistema hackeia de volta… o convite ao hacking pode ser uma isca, também chamado de “honeypot” (pote de mel), para atrair e capturar (Nota do Editor).↩︎

  4. À época, foi adotada uma convenção de linguagem inclusiva ou neutra que talvez hoje não seja a mais adequada, mas por questões históricas ela foi mantida (Nota do Editor).↩︎

  5. Neste texto não oferecemos ao leitor/a descrições sobre o funcionamento dos sistemas computacionais, o que de certo modo é indispensável para pensar a questão num viés tecnopolítico. Descrever tais sistemas com um bom aprofundamento de todos os vieses necessários para um bom entendimento da computação exigiria talvez um texto inteiramente dedicado a isso. Deixamos aqui apenas algumas referências que podem ajudar na compreensão dos princípios de funcionamento da construção de softwares e torcemos para que assim tal lacuna seja preenchida: “A máquina de pensar” – CTeMe (2007) –, “O que é um computador? O que é hardware?”, “O que é um Sistema Operacional?” e “O que é Software Livre?” – os três últimos do “Tutorial de GNU/Linux” do CMI (Centro de Mídia Independente), vide Rhatto (2006).↩︎

  6. O que não significa que, antigamente, softwares não eram escritos por equipes em regimes colaborativos. Brooks Jr. (1975) mostra, por exemplo, como a equipes corporativas produziam software desde os anos 60. Por outro lado, nessa mesma época já havia uma série de comunidades ao redor de softwares que existem mais ou menos numa espécie de âmbito público; também já existia um caso híbrido e conturbado, o da família UNIX de sistemas operacionais, história contada por Salus (1994), por exemplo. Então é preciso ler este parágrafo com uma pitada de sal, porém de todo modo a maneira como hoje softwares livres e abertos são produzidos colaborativamente em “praças” públicas como GitHub e GitLabs é extremamente contrastante com os meios de produção mais restritos ou mesmo fechados de antigamente (Nota do Editor).↩︎

  7. Não é nossa intenção aqui dar nos debruçarmos muito na história do software livre. Passamos essa tarefa para frente, recomendando livros como o “Free as in Freedom: Richard Stallman’s Crusade for Free Software”, Williams (2002).↩︎

  8. As nuances deste processo estão detalhadas na tese de Caminati (2013), um dos autores deste texto (Nota do Editor).↩︎

  9. Para confirmar isso, basta ver algum dos relatórios da Linux Foundation, como por exemplo o de “Abril de 2008”, Kroah-Hartman, Corbet, e McPherson (2008).↩︎

  10. Quando dizemos voluntário, nos referimos a aproveitamento de esforços da forma como eles foram estipulados por quem o efetuou – por exemplo, o uso de um software livre. Já por aproveitamento de esforço involuntário nos referimos à extração de produtividade através do uso dos resultados das ações voluntárias de forma não estipulada pelas pessoas que as praticaram – como por exemplo criar bancos de dados de referências (links) entre documentos na internet.↩︎

  11. OSI (sd).↩︎

  12. Veja por exemplo o depoimento de Eric Raymond no documentário “The Code”, Puttonen (2001).↩︎

  13. A Catedral e o Bazar, Raymond (2001); Raymond (2002); um texto mais ou menos interessante (pelo menos para polemizar mais um pouco) a respeito é “Why”Free Software” is better than “Open Source”, R. M. Stallman (2002).↩︎

  14. É impressionante constatar o sucesso de Linus Torvalds tanto na gestão da comunidade contribuidora do Linux quanto na aproximação com corporações interessadas em se aproveitar dessa contribuição comunitária, especialmente considerando que Torvalds historicamente manteve posturas extremamente tóxicas, arrogantes e elitistas, além de contribuir para o culto à personalidade dos chamados “ditadores benevolentes” dos projetos de software livre ou aberto – dados e análises sobre isso estão em Cohen (2018), Squire e Gazda (2015) e Corollari (sd) (Nota do Editor).↩︎

  15. Dezesseis anos depois destas linhas terem sido escritas, constatamos absurdos tais como uma empresa tradicionalmente oponente dos valores do software livre – a Microsoft – ser dona do maior repositório de código aberto: o GitHub, que não é somente uma “plataforma” extratora da colaboração como alimenta um enorme banco de dados de código usado para potencializar um sistema dito de “Inteligência Artificial” que supostamente auxilia e aumenta a produtividade na programação, mas cujo objetivo é criar dependência para programadoras e programadores num sistema proprietário; ou então a Linux Foundation restringindo sua base de colaboração ao submeter-se à lista de sanções estado-unidenses, dentro dos joguetes geopolíticos que minam as bases do internacionalismo, vide Corbet (2024). O Software Livre enquanto ideal e programa colaborativo para compartir tecnologia e conhecimento para a resolução de problemas comuns passa por uma grave crise, enquanto o pragmatismo do Open Source, alinhado ao à ideologia do empreendedorismo, prospera como nunca (Nota do Editor).↩︎

  16. Hoje há uma uma nova forma de mais valia, onde as pessoas não tem nenhum vínculo empregatício com uma empresa mas mesmo assim acabam entrando no ciclo produtivo. Se até alguns anos a participação da sociedade na linha de produção de uma empresa se limitava a um pequeno feedback da “Central de Atendimento ao Consumidor”, hoje alguém pode ajudar uma empresa sem ao menos estar ciente disso! Além disso, os bancos de dados e as redes (com ou sem fio) conectam fenômenos de massa que antes se estavam desconectados e passavam desapercebidos. Tudo o que as pessoas fornecem a bancos de dados podem representar processos de captura.↩︎

  17. E cujos detalhes se encontram no já mencionado texto “A cultura sob o ponto de vista da sociedade do controle e descontrole”, Cap. 5.↩︎

  18. Talvez seria mais acurado dizer que Lessig impulsionou (Nota do Editor).↩︎

  19. “Cultura Livre”, Lessig (2005), cuja tradução e distribuição foi realizada pela gravadora “Trama” (sic).↩︎

  20. Sobre obras na “zona do crepúsculo” (sob copyright mas mais não comercializadas): ver, por exemplo, o caso dos livros – O’Reilly (2005a).↩︎

  21. “Peer-to-peer”, or p2p, é uma topologia de troca “ponta-a-ponta”, na qual pares interagem sem a mediação de entidades centralizadoras e potencialmente censoras (Nota do Editor).↩︎

  22. Esse modelo é conhecido como de cauda curta em comparação com o modelo de cauda longa – Anderson (2008); Wikipedia (2024d). ↩︎

  23. Originalmente uma nota marginal mas, dado o seu tamanho e pela falta de espaço na versão para impressão, foi movida para o corpo do texto (Nota do Editor).↩︎

  24. No texto O tubo de ensaio da indústria cultural, Cap. 7.↩︎

  25. A cultura do compartilhamento é um comportamento ético, mas é importante reconhecer que tem beneficiado parasitas, mostrando que o mero compartilhamento e a dávida pública não é suficiente, sendo fundamental ter organização para enfrentar as infraestruturas parasitárias (Nota do Editor).↩︎

  26. Vale mencionar a problemática envolvida nas comunidades dependentes de lideranças, e o quanto isso implica em concentração e abuso de poder. O caso de Richard Stallman é mais um onde os privilégios, os méritos e as conquistas do líder por muito tempo ofuscaram atitudes deploráveis e prejudiciais às próprias comunidades, vide Levy (2019) (Nota do Editor).↩︎

  27. Originalmente uma nota marginal mas, dado o seu tamanho e pela falta de espaço na versão para impressão, foi movida para o corpo do texto (Nota do Editor).↩︎

  28. Respectivamente: um núcleo de sistema operacional – principal responsável pela operação de um computador –, um compilador específico (GNU C Compiler) – que possibilita “traduzir” programas escritos por pessoas em “linguagem” interpretada pelo computador – e um dos muitos gerenciadores de pacotes – que facilitam a instalação de programas num sistema (Nota do Editor).↩︎

  29. Da mesma forma, novos atores surgem na tentativa de desbancarem monopólios estabelecidos e tomarem o seus lugares. E vale lembrar que é muito mais difícil para um monopólio já estabelecido inovar e mudar sua forma de atuação. Há uma certa inércia que fez, por exemplo, que a Microsoft e a Apple inovassem onde a Xerox e a IBM não se dispuseram a inovar, de tal modo que em sua inércia deram brecha para outras ganhassem os novos nichos do mercado. Empresas jovens não possuem essa inércia e por isso se deixam arriscar mais. Este é um dos grandes dilemas na inovação corporativa, uma vez que a empresa jovem, ao inovar e ganhar mercado, passa a ser uma empresa estabelecida e com muita inércia para continuar inovando.↩︎

  30. Processo que analisaremos a seguir no texto “O trabalho total e a captura do desejo”, Cap. 8.↩︎

  31. Numa tradução literal, “Teia 2.0”, insinuando uma versão melhorada dos aparatos de captura.↩︎

  32. Sobre o termo “Web 2.0”. A noção de captura já consta na própria definição de web 2.0 do O’Reilly, “Harnessing Collective Intelligence”, in O’Reilly (2005b). Harness pode ser traduzido como “colocar rédeas”, o que lembra a etimologia da palavra “cibernética” (kybernetes = leme, timão).↩︎

  33. “The winners … ’[will] be the companies that throw out everything that’s come before, and build new businesses around the natural behavior of people” – “Failing Web 2.0 stars pray for copyright abolition”, Orlowski (2008).↩︎

  34. Originalmente uma nota marginal mas, dado o seu tamanho e pela falta de espaço na versão para impressão, foi movida para o corpo do texto (Nota do Editor).↩︎

  35. MySpace é uma rede “social” que já foi controlada por diversas corporações e também chegou a ser uma das “plataformas” onlines mais usadas no mundo; hoje (2024) encontra-se em decadência (Nota do Editor).↩︎

  36. O Indymedia, ou Indepent Media Center, é uma rede global de produção e difusão de mídia independente, consolidado a partir dos protestos de 1999 em Seattle contra a Organização Mundial do Comércio. O site do Indymedia é https://indymedia.org. O Centro de Mídia Independente - Brasil, ou CMI Brasil, é um dos integrantes dessa rede, e seu site é https://midiaindependente.org. O Indymedia está intimamente associado às mobilizações altermundistas e anti-capitalistas dos anos 2000, e suas principais inovações foram a publicação aberta sem necessidade de autorização prévia – na qual qualquer pessoa poderia atuar como repórter de um site jornalístico, considerando que até então não havia “plataformas” de “mídias sociais” como as que conhecemos hoje –, e também no modo particular de organização em redes autônomas signatárias de princípios comuns. Atualmente (2024), tanto o Indymedia quanto o CMI Brasil lutam também para manter seus acervos históricos disponíveis (Nota do Editor).↩︎

  37. Orkut foi uma rede “social” operada pela multinacional Google nos anos 2000, tendo sido muito popular tanto na Índia quanto no Brasil (Nota do Editor).↩︎

  38. Vide o texto “Mais-valia 2.0” – Evangelista (2007).↩︎

  39. Questão polêmica. Podem argumentar que, apesar do trabalho ser doado ao banco de dados, a pessoa é também um usuário deste e portanto a medição do valor produzido, usado, expropriado, etc é extremamente complexa. Como André Gorz ressaltou em entrevista – Gorz e Schaffroth (2003c); Gorz e Schaffroth (2003a); Gorz e Schaffroth (2003b) –, “Dentro em breve, as três categorias fundamentais da economia política - o trabalho, o valor e o capital - não mais poderão ser definidas em termos aritméticos, nem medidas por parâmetros unitários. Além do mais, justamente em função dessa característica de não mensurabilidade, fica cada vez mais difícil aplicar conceitos como mais-valia, sobre-trabalho, valor de troca, produto social bruto.” A não mensurabilidade, contudo, não implica na inexistência de uma relação assimétrica de exploração.↩︎

  40. Kleiner e Wyrick (2007b); Kleiner e Wyrick (2007a).↩︎

  41. Vale notar que aqui estamos analisando principalmente o modo de produção e não o produto final. O produto final pode beneficiar a comunidade e a empresa, mas a forma de produção beneficia basicamente a empresa, porque o produto final é dela (afinal, ela é a provedora do produto e da sua marca). Mesmo assim, controlando-se o processo de desenvolvimento controla-se não apenas a comunidade mas também o produto final.↩︎

  42. Alusão ao slogan “Don’t be evil” – Wikipedia (2024b) – da empresa de mineração de dados Google. Não apenas é típico da geração Google utilizar e louvar as ferramentas de captura fornecidas pelo Google como também compartilham da idéia de que não sendo más pessoas automaticamente contribuirão para o bem estar geral.↩︎

  43. Desde a versão inicial deste texto, houve um pequeno aporte reflexivo sobre a questão do financiamento, enunciado em Parra et al. (2015) págs. 153-156, especialmente no seguinte trecho: “_Não há quem financie que não tenha uma agenda política. Então arranje alguém que tenha uma agenda política que seja a mesma da sua, tem de descobrir isso. E aí comecei a pensar que para você conseguir pegar dinheiro de alguém que tenha uma agenda política distinta, você tem de ter uma capacidade de visão de realidade superior a essa entidade, de modo que você consiga vislumbrar usos positivos que contrabalancem os usos negativos da apropriação da sua inovação”. O problema é assim traduzido para um xadrez onde ganha quem tem a maior capacidade tático-estratégica de prever os múltiplos efeitos do financiamento, e principalmente se trarão mais benefícios do que malefícios à coletividade. Em geral, parece que a agenda dos financiadores ainda está ganhando, e que este jogo continua ainda muito arriscado para os movimentos. (Nota do Editor).↩︎