8 O trabalho total e a captura do desejo
Versão 0.0.1 - 11/10/2024130
Imagine que em cada banheiro do mundo haja um microfone e que todos eles estejam ligados a um banco de dados com enorme capacidade de armazenamento de áudio. Imagine agora que todas as pessoas que cantam durante o banho tenham seus repertórios meticulosamente armazenados em tal banco. Assim, todas as interpretações de músicas consagradas, composições próprias ou mesmo variações sobre um mesmo tema realizadas por milhões de pessoas permanecem facilmente disponíveis a qualquer pessoa com acesso total a essa base de informação.
Suponha agora que existam meios possíveis para que tal sistema seja utilizado de modo a determinar o que cada cantor ou cantora de banheiro deseja em termos de música, o que poderia ser feito com uma análise detalhada de todas as características do som gravado: escolha do ritmo, entonação, realces e demais informações psicoacústicas. Aliada a dados provenientes de outros bancos de dados – como por exemplo aqueles que guardam informações da pessoa acerca de hábitos de consumo –, tal determinação do desejo pessoal pode ser efetuada com um bom índice de acerto.
Se tal banco de dados é de propriedade de algum braço da indústria cultural, o cruzamento dessas informações aliado à capacidade crescente dos sistemas computacionais na geração de áudio não-assistida – isto é, sem intervenção humana – pode criar músicas irresistíveis aos cantores/as131 de chuveiro.
Sabendo o que cada pessoa realça ou cria em suas cantigas já não tão particulares e levando em conta que o custo computacional para criar uma música por pessoa cai mais a cada dia, podemos concluir que, num sistema de tal tipo, seria plenamente possível que a cada cantor/a de banheiro fosse oferecida uma música composta de acordo com tais parâmetros. A música então poderia ser posta a venda unicamente para o seu inconsciente co-autor/a.
Com um cruzamento de informações e uma composição eficazes, o produto oferecido ao seu único consumidor parecerá irresistível, pois trata-se exatamente daquilo que ele aprecia – e que eventualmente nem sabia ao certo antes de se defrontar com o produto, dada sua limitada capacidade de análise pessoal. A partir de então seu desejo foi capturado pelo banco de dados.
Em outras palavras, a pessoa primeiro canta para o banco de dados. Suas preferências então são detectadas e armazenadas. Posteriormente, o sistema computacional processa tais anseios e produz uma música personalizada com qualidade técnica arbitrária. Desse modo, quem cantasse durante o banho – hábito que, convenhamos, não é tão incomum assim – estaria trabalhando de graça e involuntariamente para uma indústria que poderia criar um produto a ser oferecido de volta para a pessoa. Uma vez que ninguém mais além do sistema controlador do banco de dados possui a música recém produzida, a cópia indiscriminada do áudio só pode ocorrer após este ter sido comprado pelo consumidor a quem foi destinado.
É verdade que tal suposição sobre os microfones de banheiro ignora a apreciação coletiva da música, mas deixemos isso de lado por simplicidade, levando em conta que o apelo individualista da mercadologia moderna permite que tal aproximação grosseira seja feita.
Analogamente, inúmeros outros dispositivos de captura do desejo poderiam ser instalados nos espaços de vivência e expressão. Sem levar em conta a quebra da privacidade, que certamente teria um debate crucial em tal tipo de sociedade controlada, a miríade de tais dispositivos ligados em um ou vários bancos de dados permitiria que os mais banais aspectos da vida fossem captados e considerados como um trabalho de prospecção constante do mundo habitado, podendo ser usados em princípio para a criação de produtos que capturem melhor o desejo das pessoas do que os métodos tradicionais da indústria conseguem e também para qualquer outra aplicação de controle social.
Tal metáfora, que de louca tem apenas os Orwellianos microfones em banheiros, não está tão longe de encontrar ecos em nossa própria realidade, onde sistemas de captura do desejo e de produção personalizada começam a dar seus primeiros passos.
Em 1956, o escritor de ficção científica Robert Silverberg já explorara a possibilidade da música gerada sem intervenção humana em seu conto “O circuito de Macauley”132, onde sintetizadores musicais não apenas superaram a capacidade humana de execução musical – usando para isso recursos que os instrumentos musicais tradicionais não permitem, como efeitos subsônicos e todo o tipo de realce sutil que favorecia as sensações evocadas pela execução musical – como também eram capazes de compor por conta própria, sem a menor intervenção humana.
George Orwell, em seu notório romance “1984”133, previa o uso de dispositivos captadores de som e imagem (as famigeradas teletelas) para o controle comportamental de habitantes de um estado totalitário.
Nem Silverberg cogitou a possibilidade do ser humano ainda desempenhar o papel de inspirador do processo criativo do sintetizador eletrônico, nem Orwell imaginou a teletela sendo utilizada para perscrutar os desejos dos seus vigiados, talvez por falta de percepção do poder que a mercadologia e os bancos de dados desempenhariam no mundo do futuro.
Acontece que hoje os sistemas compostos por equivalentes de teletelas, bancos de dados e sintetizadores sonoros já esboçam tal tipo de comportamento, como veremos a seguir.
Para as pessoas que julgam a idéia do microfone de banheiro por demais inconcebível, que tal lembrarmos das várias versões do mundialmente conhecido programa televisivo inspirado na figura do Grande Irmão? Nele, câmeras são espalhadas por todos os cômodos de uma casa ou estabelecimento onde um grupo de pessoas é confinado e instigado a atuar sob diversas condições de pressão social. No caso, o banco de dados que armazena e processa essas informações é a própria emissora de televisão e o laboratório social está tanto atrás quanto à frente da tela: no estúdio, cobaias que atuam para as câmeras; nas residências, cobaias que atuam nos televisores, telefones e computadores, por onde decidem o destino final dos hóspedes da casa vigiada.
Mas em tal escala, a captura do desejo não é efetiva para a produção de bens personalizados: no máximo, ela ajuda a determinar produtos em escala de massa, serializados e para o público que determinou o desfecho da história. Ou seja, é um modelo de captura circunscrito no modo de produção fordista/taylorista.
De fato, foi na internet que os bancos de dados de captura do desejo mais eficientes se estabeleceram. Como exemplo de captura na área da música, tomemos o banco de dados Last.fm, um serviço em princípio gratuito (o que não é verdade, pois, como veremos, ele ganha em cima da informação de usuários/as) que134
registra as músicas que você ouve e oferece recursos personalizados com base em suas preferências musicais, faz recomendações de artistas e usuários com gostos parecidos, elabora rádio personalizadas, tabelas e muito mais. Você também pode usar a Last.fm para ouvir música, saber mais sobre artistas de que você gosta, encontrar pessoas com gosto musical parecido, shows perto da sua cidade, tabelas e mosaicos para o seu site pessoal.
Mas o que existe de inovador no banco de dados da Last.fm é o sistema conhecido como “scrobbling”, que135
significa que quando você ouve uma música, o nome da música e do artista são enviados para a Last.fm e adicionados ao seu perfil musical.
Assim que você faz o seu registro e download do software da Last.fm, você pode fazer o scrobbling das músicas no seu computador ou iPod. As músicas que você ouve também aparecerão no seu perfil para que outras pessoas vejam o que você anda ouvindo.
O scrobbling é feito milhões de vezes ao dia. Estes dados ajudam a Last.fm a organizar e recomendar músicas aos seus usuários, elaborar rádios personalizadas e muito mais.
Em outras palavras, conforme a pessoa altera sua lista de execução musical do seu aparelho, tocando mais algumas músicas do que outras, o programa do Last.fm envia tais informações para seu banco de dados.
Como dito anteriormente, a Last.fm não presta exatamente um serviço gratuito. Em princípio ela é apresentada como um serviço, como por exemplo afirma slogan presente em sua página inicial:
A rádio Last.fm registra o seu gosto musical e torna-o ainda melhor.
Na verdade, o Last.fm se reserva ao136
direito de vender ou licenciar dados de preferências musicais de pseudônimos para uso comercial; no entanto, jamais venderemos dados pessoais que permitam identificar um usuário especifico. Podemos, por exemplo, licenciar nossas tabelas semanais para uso comercial, mas isso não comprometeria nenhuma informação pessoal.
Ou seja, travestido de serviço, o Last.fm na verdade é um banco de captura de preferências musicais que, ao contrário do nosso hipotético sistema de microfones sanitários, possibilita também o cruzamento de informações entre usuários/as do banco de dados e que pode ser vendido para qualquer empresa da indústria cultural.
Sistemas de captura do desejo não são exclusividade do Last.fm. Sítios como Flickr, Youtube e similares podem ou poderão de alguma forma se tornar capazes de minerar escolhas e vontades das suas respectivas bases de usuário137.
Tais sistemas inauguram uma era em que qualquer atividade humana pode ser registrada num banco de dados: da mesma forma como o Lasf.fm grava informações sobre músicas executadas no computador do usuário/a, qualquer outra atividade poderia ser prospectada. Se hoje tal prospecção depende de computadores ainda grandes e nem sempre presentes em todos os ambientes de vivência, a tendência de miniaturização e onipresença tecnológica fará com que dispositivos de captura se tornem mais e mais presentes na vida das pessoas. A começar pelos telefones celulares, que a cada dia adquirem mais e mais características de computadores pessoas, ligados à internet e equipados com os mais diversos periféricos de aquisição de dados.
Do ponto de vista da organização social do trabalho, sistemas de captura do desejo estendem a ação do modelo fordista/taylorista de produção, cuja cadeia pode ser simplificada para o seguinte esquema:
.--> cliente --> feedback --> empresa -,
'------------ produto <----------------´
Tradicionalmente renegado ao papel passivo de consumidor, nos recentes modelos de melhoria dos produtos da fábrica fordista – que logicamente levam a um aumento do consumo – ao cliente foi dada a opção de sugerir à indústria sua opinião em relação aos bens consumidos através do discurso que a indústria supostamente está interessada em melhor atender as demandas por uma vida melhor para todos/as.
Conhecido como feedback, tal sugestão ou retorno do cliente deve ser considerado como trabalho fornecido gratuitamente à empresa no melhoramento da linha de produção, fazendo com o que o cliente trabalhe em dobro para obter seu produto.
Com as modernas formas de captura de preferências do usuário, que em princípio são oferecidas como serviço, a própria noção de quem é o prestador de serviço e quem é o cliente – muitas vezes denominado simplesmente de usuário/a – já não vale inteiramente, afinal, quem é que está prestando o serviço? A empresa que oferece a ferramenta de captura e algumas de suas facilidades ou o usuário que fornece à empresa as informações a respeito da sua vida, suas escolhas e seus anseios?
À essa quebra da divisão entre o cliente e o prestador num serviço que é realizado continuamente daremos o nome de Trabalho Total.138
O trabalho total, voluntário ou involuntário, se realiza quando as atividades sociais se encontram permanentemente mobilizadas por algum aparato de registro e cruzamento de informações. Ele pode surgir, por exemplo, quando as pessoas são mediadas por banco de dados e fornecem detalhes de suas vidas particulares ou grupais, ou quando um banco de dados simplesmente fornece ou recebe uma informação do seu usuário/a.
No trabalho total, feedback e produto podem estar fundidos numa mesma entidade: se, no diálogo entre a indústria e o consumidor o produto era a fala da indústria e o feedback a fala do consumidor, no trabalho total o produto industrial é o feedback da indústria no consumidor e o feedback do consumidor é o produto do consumidor fornecido à indústria. Assim, um serviço oferecido sob a lógica do trabalho total é um pedido de feeback de quem o utiliza para quem o oferece.
O trabalho total também é passível de alienação: nem sempre é necessário que o banco de dados associe a captura de dados com a pessoa que o capturou e pode estar apenas interessado na informação em si.
O trabalho total é o constante modulador dos fluxos desejantes: escolhas são fornecidas para abrir caminho a novos produtos que geram novas escolhas. Hoje, com o intuito de captar todo o excedente salarial dos incluídos no mercado de trabalho. Amanhã, talvez para o controle social totalizante.
A captura do desejo, por outro lado, promove uma nova forma de massificação, massificação desmassificada, dada como a capacidade de produção em linha de montagem, serializada, de produtos distintos entre si, personalizados. Se no fordismo a diferenciação se dava pela cor do automóvel ou pela existência de pequenas variações entre os modelos, novos modos de produção hoje ensaiam linhas de montagem de produtos (materiais ou imateriais) com grande diferenciação entre si e concebidos de acordo com as preferências de cada possível cliente, de forma análoga ao modo como seria feito no nosso imaginário sistema de microfones em lavatórios.139
É vontade das instâncias de acumulação de capital maximizarem seus lucros. Se o conhecimento e eventual controle do desejo – algo sempre tencionado pelo marketing mas dificilmente alcançado com tanta eficiência –, a posse e a capacidade de cruzamento de todas as informações existentes em todos os momentos da existência humana – mesmo as mais banais – ajuda nesse sentido, tão melhor. Se os meios de produção possibilitam dar vazão a tais desejos ao criarem bens de consumo diferenciados de acordo com cada vontade de cada pessoa, melhor ainda.
Os processos produtivos e os dispositivos de controle, por si sós, não são capazes de prever o desejo pessoal e transformá-lo em mercadoria de uma forma que não seja em macroescala. Por falta e até por impossibilidade de uma compreensão total da natureza humana, dos processos neurológicos, psicológicos, sociais e da história pessoal de cada pessoa – que em sua totalidade levaria a sociedade totalmente controlável – é que o sistema capitalista necessita cada dia mais do trabalho total e da captura do desejo.
Considerando que vivemos numa ditadura do mercado e dos seus produtos, a captura do desejo é um período de transição que será suprimido pela onisciência dos bancos de dados sobre as vontades das pessoas – e com isso terão o controle total sobre elas – ou ela representa uma atividade que deverá ser realizada constantemente, dada a constante existência do ruído social e da novidade, fluxos estes fugidios e nem sempre passíveis de antecipação?
Se ainda há alguma dúvida140 a respeito da movimentação do capital em torno do trabalho total e da captura do desejo, que estas descrições de palestras, oriundas da agenda de um evento sobre “A Era Digital 2.0”, acabe com ela definitivamente141:
Contextual Branding: O futuro da construção de marcas: Para criar o futuro, você deve esquecer o que sabe. Esta é a mensagem de Martin Lindstrom sobre o futuro das marcas contextuais. Todos nós sabemos sobre as lições clássicas de construção de marcas. Citando estudos e casos de sucesso ao redor do mundo, Lindstrom mostra como o telefone celular, os PDAs, os chats, a internet e os canais clássicos de mídia vão trabalhar juntos de uma forma que ninguém nunca sonhou. Lindstrom chama este fenômeno de Contextual Branding, que cria sinergias entre a mídia offline e online e torna cada mensagem tão relevante que o consumidor simplesmente não pode viver sem o produto.
Keynote speaker: Martim Lindstrom, futurologista e guru de branding
[…]
A transformação dos consumidores e dos negócios: A busca está reescrevendo as regras de negócios e mudando a nossa cultura. Conheça o conceito de banco de dados de intenções e saiba como tirar proveito dessa nova era.
Palestrante: John Battelle, chairman da Federated Media Publishing e autor do livro The Search
Se a técnica da captura total do desejo e produção serializada de irresistíveis produtos distintos entre si ainda é um sonho do totalitarismo do mercado dada a inúmeras limitações técnicas que ainda não foram vencidas, a corrida pelo armazenamento do maior número de informações possíveis que podem ser fornecidas pelos potenciais consumidores já começou142.
References
Elaborada a partir da versão original de 03/01/2009, cuja cópia encontra-se em https://sarava.fluxo.info/Estudos/TrabalhoTotalCapturaDoDesejo.↩︎
À época, foi adotada uma convenção de linguagem inclusiva ou neutra que talvez hoje não seja a mais adequada, mas por questões históricas ela foi mantida (Nota do Editor).↩︎
Agradecimento ao KK por sugerir a idéia do trabalho total, que apesar de ter sido feita num outro contexto, foi muito pertinente para a concepção deste texto.↩︎
O capitalismo funciona da criação de necessidades. Ao usar redes sociais, pode-se criar a personalização das necessidades e produtos altamente direcionados: “reprodutibilidade técnica personalizada”, que se encaminha para captura de todos os recursos dos/as assalariados. A indústria pode começar a investir em manufaturados personalizados (linhas de montagem onde os produtos feitos em série não são necessariamente iguais entre si) e aí teremos a personalização dos produtos materiais espelhando a personalização que hoje vemos nos bens imateriais gerados automaticamente. Um protótipo disso é o RepRap – Project (2024), criticado por Robert Kurz em seu texto “A Máquina Universal de Harry Potter” – Kurz (2005); discussão a respeito em Saravá (2007b).↩︎
Originalmente uma nota marginal mas, dado o seu tamanho e pela falta de espaço na versão para impressão, foi transformada numa nota ao fim do texto (Nota do Editor).↩︎
Podemos dizer que, com o trabalho total, o socialmente possível passou a ser também o algoritmicamente possível, sendo que o trabalho total e a captura do desejo resultam de determinados acoplamentos de máquinas informacionais com máquinas desejantes (as pessoas).↩︎