3 Apresentação
Versão 0.0.1 - 28/09/202419
O Saravá é parte de uma intersecção de vários grupos que discutem política e tecnologia de diferentes formas, sendo ele próprio um grupo de tecnopolítica por considerarmos que técnica, a cultura e a política não estão separadas, pois, por um lado, toda decisão técnica é política, e, por outro, é impossível pensar a política sem a técnica.
O Saravá é um grupo que estuda e realiza tecnopolítica. Tanto pela prática quanto pela teoria, produz alguns estudos sobre tecnologia, política e sociedade. É um costume mais ou menos irregular das pessoas que fazem parte do Coletivo Saravá de compartilhar suas discussões com outros grupos. Realizamos tais debates em vários locais, seja em listas de discussão, em salas de bate-papo ou mesmo em conversas informais.
Deixar muitas conversas apenas no ar ou então esquecidas nalgum arquivo perdido de lista de discussão (ou log de bate-papo) é uma perda enorme de potencial do que nossas discussões podem ser desdobrar.
Nestes textos o Coletivo Saravá apresenta seus estudos de tecnologia e política. O Saravá acredita que não basta a proposição de formas de atuação dentro de estruturas técnicas sem paralelamente propor um conhecimento adequado da relação entre o capital e a sociedade no desenvolvimento da informática, da técnica e da cultura.
Teoria e prática são, em realidade, dois aspectos da ação tática coletiva: antes da ação, planejamento mínimo para estabelecer suas linhas gerais e em seguida iniciá-la. Em seguida, reflexão sobre a prática em curso que atualize a tática e realize novas ações. Como, contudo, não há uma ação inicial precedida por um planejamento inicial – afinal, a reflexão antes de uma ação apenas se realizou enquanto uma ação, que por sua vez veio de uma relação semelhante anterior –, teoria e prática se levantam (bootstrapping) mutuamente o tempo todo, como um sistema cibernético calibrando seu curso a partir dos resultados (mas, ao contrário deste, nem sempre buscamos o equilíbrio e, portanto, não tendo um destino previamente traçado).
Fazendo então nossas as palavras de Deleuze a respeito da relação teoria-prática20:
Às vezes se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma conseqüência; às vezes, ao contrário, como devendo inspirar a teoria, como sendo ela própria criadora com relação a uma forma futura de teoria. De qualquer modo, se concebiam suas relações como um processo de totalização, em um sentido ou em outro. Talvez para nós a questão se coloque de outra maneira. As relações teoria-prática são muito mais parciais e fragmentárias. Por um lado, uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio e pode se aplicar a um outro domínio, mais ou menos afastado. A relação de aplicação nunca é de semelhança. Por outro lado, desde que uma teoria penetre em seu próprio domínio encontra obstáculos que tornam necessário que seja revezada por outro tipo de discurso (é este outro tipo que permite eventualmente passar a um domínio diferente). A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um revezamento de uma prática a outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a prática para atravessar o muro.
[…]
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante… É preciso que sirva, é preciso que funcione. […] Não se refaz uma teoria, fazem-se outras.
Assim, nossas formulações pretendem, ante ao deslumbramento e à maravilhização provocados pelas novas tecnologias, estabelecer críticas sobre até que ponto tais desenvolvimentos técnicos levam necessariamente a civilização na direção de um mundo mais justo e de igualdade social. E também para questionar o discurso que, mesmo após os primeiros momentos em que a própria “ciência objetiva” teve seus alicerces minados, ainda insiste na defesa de um determinismo social – “viemos de um passado determinado e para o futuro determinado e inevitável agora seguimos” – que nega a autodeterminação dos grupos sociais na escolha do seu caminho para o futuro.
Tentaremos mostrar que os pressupostos para a mudança social são anteriores ao uso da tecnologia e estão intimamente ligados à capacidade de auto-organização e autogestão. A tecnologia pode ser empregada como facilitadora de tais capacidades, mas da mesma forma podem ser também empregadas simultaneamente (e aí que está seu maior perigo) para reforçar e aumentar o controle social por parte de instâncias centralizadoras de poder. O caminho escolhido foi, portanto, conceituar as apropriações e inapropriações, capitalismo e anticapitalismo.
Os textos a seguir devem ser entendidos mais como reflexões em andamento (work in progress) do que análises e manifestos prontos e opiniões fechadas. Os textos nem sequer refletem corretamente a opinião de todas as pessoas integrantes do Saravá. São textos que contém mais insights e chuva de idéias do que rigor acadêmico. Usamos e abusamos de um certo ecletismo, criando um patchwork composto daquilo que serviu para nós. Não sabemos o quanto que, com isso, agredimos às filosofias, ciências, pensadores e escolas do saber: somos selvagens em nosso sincretismo, mas é nesse ímpeto que conseguimos reunir o material de apoio para nossas ações. Furtando as palavras de Celso Furtado21,
Estas páginas foram escritas inicialmente com essa intenção: notas desse diálogo que mantemos incessantemente com as sombras que entrevemos. Como nas composições seriais, excluem-e as idéias de tônica e de dominante e a massa sonora é explorada em todas as direções; dessa liberdade surge uma nova estrutura, vetor da mensagem do compositor. É com este estado de espírito que se deve ler o que se segue: nem tônica, nem dominante: de qualquer ponto todo o horizonte deve descortinar-se.
Somos DJs de texto e este é o nosso remix. Nossos estudos apenas são um dos resultados sempre em mutação das experiências e discussões mantidas dentro do coletivo e foram concebidos para fomentar o debate entre os grupos interessados em melhor posicionar suas práticas numa sociedade cujo sistema econômico produtor de miséria e desigualdades vem a cada dia se aperfeiçoando mais e mais para aumentar sua eficiência de dominação e controle e minimizar os focos de resistência. Sistema esse que se adapta e aprende inclusive a partir da digestão das próprias críticas que a ele são direcionadas, como veremos na maioria dos textos que se seguem.
Cada texto, em geral, é composto de uma apresentação de conceitos e de um ou mais estudos de caso. A metodologia utilizada foi a mesma da programação de software: blocos principais são esboçados e posteriormente refinados. Assim como programas, temos mais ou menos um objetivo a ser alcançado com cada texto mas, no entanto, erros de programação podem fazer com que o resultado seja diferente do almejado: o programa roda num computador, o texto “roda” na mente de quem o lê, produzindo impressões e reflexões diferentes em pessoas e momentos diferentes. A partir de discussões e também do envio de textos a amigos/as22, depuramos nossos escritos levando em conta críticas e autocríticas para ajustar melhor o resultado da leitura, o que remete (como vocês verão ao longo dos textos) ao modo de desenvolvimento do software e ao comportamento de sistemas cibernéticos, seja para o bem, seja para o mal (e que aqui fica registrado também como autocrítica).
Nossa metodologia é, portanto, avessa ao modo acadêmico e meritocrático de aquisição de conhecimento: usamos um sistema Wiki – onde é possível acompanhar todas as modificações efetuadas nos textos – 23, não nos importamos com a autoria – “não nos importamos com quem você é, mas apenas com seu código; mostre-nos o código”24 – e muito menos se, num primeiro momento, esboçamos idéias e conceitos equivocados: ao contrário de Fermat25, não nos falta papel para nos explicarmos melhor e corrigirmos os equívocos e prosseguirmos nas nossas tentativas de demonstração (e não pretendemos com esse paralelo nos compararmos ao matemático ou defendermos e declararmos a verdade de nossas palavras).26
O ingrediente fundamental do nosso método é o diálogo, a troca de textos, de trechos e de palavras. É através do diálogo que efetuamos a depuração (debug) do nosso código textual: como exercício teórico-prático, nossos estudos surgem da necessidade de expressão e criação; para tanto, discutimos e escrevemos algo; da troca de dos textos e de outras discussões – com pessoas nem sempre e preferivelmente de fora do nosso grupo de estudos –, avaliamos o quanto do que gostaríamos de transmitir é compreendido e, sobretudo, quais novas compreensões, interpretações e idéias surgem da leitura dos nossos textos, informações que então retornam à nossa teoria-prática – na correção dos textos mas também em ações diversas –, de modo que nossos próprios métodos e objetivos variam com o tempo. Processamento de discursos.
Assim, os textos que você estiver lendo já podem estar desatualizados e fazer parte de versões antigas da nossa dialógica, ou ramificações antigas dos textos que estamos trabalhando atualmente. Parafraseando Gell-Mann, o trabalho da concepção destes textos constituiu em si a evolução de um sistema adaptativo complexo27.
Por fim, gostaríamos ressaltar mais uma vez que o motivo principal da existência desses textos foi o desejo de compartilhar nossa discussão e não a vontade de impor uma visão de mundo e um modo de análise único. Torcemos para que cada pessoa e cada grupo mantenha suas próprias análises e ficaríamos muito felizes se as nossas puderem ajudar em tal empreitada. Boa leitura e reflexão!
3.1 Sobre os estudos
Os Estudos do Saravá são compostos de textos que foram desenvolvidos por integrantes do grupo e/ou com a participação de terceiros/as.
No entanto, tais estudos não representam necessariamente a posição do Saravá em relação aos temas tratados, independentemente dos mesmos não virem acompanhados de autoria definida ou serem veiculados de acordo com licenças [de uso] do grupo.
References
Elaborada a partir da versão original de 19/04/2013, cuja cópia encontra-se em https://sarava.fluxo.info/Estudos/Apresentacao.↩︎
Extraído de “Os intelectuais e o poder – Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, em Foucault (1998) Cap. IV, págs. 69-71.↩︎
À época, foi adotada uma convenção de linguagem inclusiva ou neutra que talvez hoje não seja a mais adequada, mas por questões históricas ela foi mantida (Nota do Editor).↩︎
Sobre um Wiki, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Wiki↩︎
Derivamos essa afirmação a partir do exemplo de indiferença que Torvalds (2000) expressou com relação à conversa fiada e que pode muito bem ser transposta à meritocracia que hierarquiza pessoas mediante o acúmulo de títulos e conhecimento. Se nos importamos com uma teoria-prática pelo seu funcionamento, da mesma forma nos importamos com o que é dito. O emissor/a do discurso importa enquanto portador/a de interesses (e de interesses por utilizar determinado discurso), mas não sua autoridade. Nossos valores se aproximam muito mais da linha de desenvolvimento de software do que da construção de conhecimento acadêmica, baseada em currículos e dissertações.↩︎
“Eu tenho uma demonstração realmente maravilhosa para esta proposição mas esta margem é muito estreita para contê-la”, in Singh (2004) pág. 80).↩︎
Como disse Pierre Lévy, “Para aqueles que servem dela [a máquina para tratamento de textos] com regularidade, o texto”armazenado” não é mais considerado como objetivo a alcançar, mas como a “matéria prima” a partir da qual eles retrabalharão. Eles têm portanto tendência a “escrever” de maneira modular, de maneira a poder recombinar esses fragmentos de texto para uma nova utilização. Já se vê a conseqüência sobre o produto final: cada vez menos uma síntese global e cada vez mais escrita combinatória”, in Pessis-Pasternak e Lévy (1993) pág. 257. Não sabemos ao certo quanto essas palavras são fiéis aos nossos métodos de escrita e aos nossos resultados, mas parecem ressoar a muito do que temos feito. Aliás, já se observa ressonância entre as palavras de Deleuze a respeito da necessidade de funcionamento na relação teoria-prática e na de utilização contida na escrita combinatória indicada por Lévy.↩︎