1 Prefácio
Versão 0.0.1 - 03/11/2024
Há alguns anos, não havia o suplício adicional à vida na Terra trazido por “plataformas” como ChatGPT, WhatsApp, Netflix, Spotify, Instagram, Tik Tok e tantas outras. Tormento disfarçado de benesse e funcionalidade, pois se apresentam como soluções aos problemas da degradação social e ambiental trazidos pela própria informatização, aprofundando o processo ao invés de combater suas causas. Talvez, em alguns anos, não haja mais nenhuma delas e ninguém se lembrará desses nomes sem nenhum significado. Assim como ontem Orkut, MySpace e Last.fm eram ícones dessa nova situação e agora tendem a ser sombras dela. Alguém se recorda ou já ouviu falar deles?
Já existiam monstros como o GAFAM1, mas em escala, escopo e influência muito menores.
Os chamados “smart” phones haviam acabado de invadir a sociedade como imposição do mercado, e não usá-los passou a cada dia a ser um privilégio maior.
Há alguns anos, falar sobre grandes bancos de dados de atividades humanas capturados à revelia das pessoas, de modo a posteriormente direcionar os seus comportamentos e neutralizar a força dos movimentos sociais emancipatórios, não daria um debate amplo dentro da esquerda. Talvez hoje ainda seja um assunto muito restrito se comparado com todo o impacto socioambiental negativo que essas coisas produzem.
Mas o Saravá já estava discutindo para onde tais tendências levariam o mundo, a partir das próprias experiências vividas nesse meio e das reflexões sobre as apropriações locais e globais que eram sentidas e sofridas.
Este Volume Menos Um do Projeto Vertigem contém textos críticos e propositivos elaborados entre 2008 e 2013 pelo Saravá, “um grupo que estuda e realiza tecnopolítica”2.
O Saravá hoje em dia é mais conhecido como um dos organizadores da CryptoRave, “um evento anual que reúne, em 24 horas […], diversas atividades sobre segurança, criptografia, hacking, anonimato, privacidade e liberdade na rede”3, porém suas origens remontam aos grupos e coletivos técnicos anti-capitalistas no Brasil dos anos 2000, muitos deles surgidos na esteira do Centro de Mídia Independente e das rádios livres, numa história pouco conhecida e raramente contada4.
Aqui o foco não será sobre o Saravá, mas o que o grupo acumulou e produziu em termos de análise crítica e propostas de arranjos sociotécnicos.
São composições partindo da percepção de que as apropriações dos movimentos sociais não eram novas, nem haviam começado naquela época muito menos em períodos anteriores – como por exemplo nos idos de 1968. Também não iriam parar tão cedo.
A desorganização de grupos também precisa ser vista como uma opressão estrutural e sistêmica, e contra isso o Saravá criou um protocolo de exemplo. Não é o melhor, pode até ser meio feio, mas já tá pago.
Os textos foram escritos num momento tido como novo na história do Brasil, dentro de um contexto mundial de inclusão digital que dava asas ao otimismo das potencialidades democráticas e colaborativas da internet, amparadas por um governo social-democrata da centro-esquerda soft que aparentemente teria conseguido realizar um pacto social sem precedentes e que se beneficiaria de uma conjuntura geopolítica e econômica ímpar para sair de amarras coloniais diretamente para uma soberania de moldes digitais ancorada no século XXI.
Talvez o que os textos exponham já seja atualmente muito conhecido, bem descrito e analisado à exaustão. Mas, na época, estávamos a vislumbrar esses processos enquanto os mesmos começavam a desandar à nossa frente, ou mesmo enquanto éramos tragados por eles.
Tratava-se de uma etapa dentro da fase de acumulação informacional no capitalismo – a construção dos bancos de dados socioculturais – que seria usada, na década seguinte, como base para a nova fase das chamadas “Inteligências Artificiais” generativas, assunto que trato num texto bem posterior5; processo concomitante à extração de outros recursos “naturais” necessários para operação dessa mesma megamáquina computacional.
Havia muita treta, muita polêmica6, e transformar nossa vivência do momento em teoria abstrata foi uma maneira de não citar nomes nem casos específicos.
Participei do Saravá entre 2004 e 2014, período no qual colaborei com as discussões e com a edição dos textos a seguir. Foi minha primeira experiência significativa para organizar pensamentos num debate político, e onde contribuí com algumas questões que revisito noutros volumes deste projeto.
Quando comecei a citar demais esses textos em outros trabalhos, percebi que seria importante publicá-los em formato livro.
Decidi então editá-los e incluí-los no Vertigem, cerca de 12 anos depois da aparição dos originais, por alguns motivos principais:
- A atualidade e pertinência destes textos.
- A pouca divulgação que eles tiveram ao longo dos anos.
- A intensa relação deles com os outros volumes deste projeto pois, mesmo após meu período no Saravá, prossegui esses estudos ao meu próprio modo.
- Hoje dispomos das ferramentas que facilitam a concretização dessa vontade antiga7 de publicálos em formato impresso.
As versões originais da maioria desses textos8 eram disponíveis em https://wiki.sarava.org/Estudos/Estudos9, e a última versão publicamente arquivada10 encontra-se em https://web.archive.org/web/20100803073214/wiki.sarava.org/Estudos/Estudos.
Mantenho um espelho mais atual11 em https://sarava.fluxo.info/Estudos/Estudos, que pode ser usado para comparar os originais com as pequenas mudanças de edição contidas neste volume, incluindo ajustes bibliográficos, notas marginais mudadas de local, correções ortográficas e gramaticais, assim como alguns trechos e textos que não foram incluídos12. Evitando alterar os textos originais, vali-me de uma série de notas marginais para explicar ou mesmo debater alguns trechos, inspirado no uso que Max Liboiron faz de tais notas como locais de “nuance e política”13. Os poucos adendos no meio de frases são indicados por colchetes [desta forma]. Estes textos também foram preguiçosamente mantidos na antiga prática (e não norma) ortográfica anterior.
Como critérios de seleção, priorizei os textos nos quais participei na elaboração, que estivessem com mais aspecto de completude e acabamento, que ainda possuem atualidade, relevância e que sobretudo ainda ressoam em mim. Se esses textos já nasceram como remixes14, esta coletânea é um remix do remix, respeitando o conteúdo e o licenciamento originais.
Lançando isso no ano em que o Saravá faz seu vigésimo aniversário, torço para que estes saraventos da mudança possam de algum modo continuar contribuindo com o debate.
Saravá!
O Editor
References
Sigla para designar conjuntamente as corporações Google, Amazom, Facebook e Microsoft. Existem diversas outras siglas para indicar megacorporações globais, e não somente as ocidentais.↩︎
Uma versão abreviada do contexto e surgimento do Saravá é dada em em Parra et al. (2015).↩︎
Exemplos destas tensões foram as duas edições do Encontro: Cultura Livre e Capitalismo (2007c, 2011) e a coletânea “Movimentos em marcha: ativismo, cultura e tecnologia”, de Assumpção et al. (2013).↩︎
O Bookup, por exemplo, é uma ferramenta de autoria montada especialmente para facilitar esse tipo de edição, vide Rhatto (2024a).↩︎
Fora do ar em 27/09/2024.↩︎
Vale pontuar também que todo o conteúdo desde volume é distribuído de acordo com a licença original, Saravá (2013a).↩︎