5 Digital é controle
5.1 Prolegômenos do Editor
O que é e para quê serve a tão falada digitalização? Esse tal de digital é laureado e alardeado como uma “evolução” e um “melhoramento” de relações “analógicas”: a digitalização seria a passagem de um mundo ruidoso e incerto para outro de perfeição e harmonia. Mas será mesmo?
Longe de ser uma melhoria, a digitalização é um processo de representação por simplificação, e a redução de ruídos e incertezas é compensada por uma perda de diversidade, de diferença, de conteúdo. Noutras palavras, a digitalização é um processo de controle que, como qualquer outro, necessariamente incorre em descontrole.
Mas o que estamos entendendo aqui por “controle”?
Para começar bem, este humilde editor fará uma discussão preparatória para a argumentação que se segue, apoiando e facilitando o entendimento dos conceitos de controle, entropia e digitalização usados ao longo do texto, que talvez fosse melhor intitulado como “Digital é (des)controle (entrópico)”.
Não tendo encontrado nenhuma discussão detalhada sobre “controle”, recorri ao patchwork, à feitura de uma colcha de retalhos teórica que convida a estudos mais aprofundados.
5.1.1 Poderologia
O digital pode ser entendido como um processo de controle, sendo uma recente linha de base para se controlar algo. Dentro desse entendimento, controle seria um conceito mais geral, e a digitalização seria um dos seus modos.
Daí que começaremos explicando o que assumiremos por controle no presente trabalho, numa rápida e incompleta genealogia.
A palavra controle é relativamente recente dentro das longas histórias da cultura humana, e está inserida dentro de uma gradativa divisão e hierarquização do trabalho.
Central aqui é entender como, de técnica em técnica, de coerção em coerção, atividades foram se separando. Do ato integral de realizar um trabalho, passou-se a atos interligados de mandar e realizar, daí para decidir, mandar e realizar, e assim sucessivamente, até chegar naquilo que hoje é chamado, no meio militar-corporativo, de “cadeias de comando e controle”.
Não entraremos aqui na árdua tarefa de uma genealogia do trabalho e das diferenciações, divisões e opressões sociais – como por exemplo os sistemas de classificação, racialização, generalização etc –, mas pensaremos esquematicamente em diferentes sucessões de arranjos sociotécnicos, nos quais cada cargo – ou “instância” – recebe um nome/distinção e realiza uma parte (des)proporcional do trabalho.
Também não pretendemos argumentar que toda a divisão de trabalho é péssima e leva necessariamente à opressão: é importante não confundir divisão de trabalho com autoritarismo e cargos ou papéis fixos, vitalícios e/ou coercitivos. Esse tema também não fica para agora.
Ao invés disso, o caminho mostrado aqui será o da transição para comunicações cada vez mais estruturadas, do gesto para a oralidade, da oralidade para a escrita e desta para a diagramada, associadas a processos disciplinares de saber e poder e também a modos de produção e organização do trabalho.
Falar em controle implica em falar de poder? Controle seria somente um sinônimo de comando? Qual seria a diferença entre controle, comando e governo?
Essas palavras muitas vezes são usadas de maneira intercambiável, mas aqui faremos uma diferenciação específica, isto é, considerando que outras interpretações e definições são possíveis.
Todas elas parecem remeter, ou depender, uma noção mais básica e, ao menos aparentemente, muito difícil: a de poder. Como observa Comparato e Filho (2014)2,
A importância do poder, como fenômeno social, ainda não foi inteiramente compreendida. O seu estudo vem sendo confinado, quase que exclusivamente, no campo da política, onde, aliás, é mais analisado sob a forma de dominação hierárquica do que de influência determinante[…]
No entanto, como assinalou Bertrand Russell, o poder é o conceito fundamental das ciências sociais, tal como o de energia, na ciência física. Analogamente a esta, ele afeta várias formas: política, econômica, religiosa, moral, técnica3. O estudo isolado de qualquer dessas manifestações só pode produzir um resultado parcial, assim como a análise de uma só forma de energia é forçosamente limitada e incompleta. Ademais, tal como a energia, o poder sofre um processo de contínua transformação, o que torna ainda mais delicadas a observação e a análise científicas.
Não sei se você, que está lendo este texto, vem de uma sociedade, como aquela de onde venho, na qual a noção de poder parece ser implícita: mesmo que ela não seja definida, temos mais ou menos a impressão de que sabemos do que se tratada, e conseguimos, a nosso modo, entender enunciados contendo situações onde o poder se manifesta. (Mas pode ser que você venha de uma socieade onde não haja a noção de poder. Se este for o caso, talvez este texto possa ajudar a entender essa estranha noção existente em sociedades estranhas…).
Ou seja, em muitas (senão todas?) sociedades, existem noções sobre o que é o poder. Talvez seja até mais complicado do que isso: cada pessoa pode ter várias noções que podem ser expressas por uma palavra, em seu próprio idioma nativo, indicando “poder”, e que possa ser traduzida em palavras equivalentes noutros idiomas.
A dificuldade está na passagem da noção, ou melhor, das inúmeras noções de poder para uma definição de conceito4 poder que dê conta das multiplicidades de sua manifestação e que não seja também um dispositivo de poder que imponha uma verdade justificadora, ou mesmo instaladora, de situações de poder.
Talvez esse seja um paradoxo essencial na definição de poder: ela imporia um poder sobre dizer o que é e o que não é poder, ela teria onipotência sobre afirmações sobre poder.
Nesse sentido, a obra de Michel Foucault parece nos expor um paradoxo desta trindade poder-direito-verdade, ou mesmo poder-saber-verdade5: quanto mais se tenta definir poder, aumenta-se um saber específico associado a uma potencial imposição de verdade, não só uma “verdade teórica” como uma que possua consequências muito concretas na existência de muita gente.
Trata-se de um efeito duplo, similar à influência da observação na medição de diversos fenômenos, onde o fato de observar impacta na produção da medida registrada: definir poder é um ato de poder e pode interferir nas práticas de poder.
Isto parece condenar qualquer tentativa de definir o poder não somente ao autoritatismo como ao erro epistemológico e ao comprometimento do “objeto” estudado. Mas, se tomarmos esta como condição de partida, ganharemos a vantagem de operar uma prática conceitual que precisa ser auto-crítica em relação àquilo que produz. É essa própria limitação conceitual que convida à auto-crítica que pode questionar o poder. Por exemplo, estamos a recorrer a este ou aquele conceito de poder porque nos é útil a manutenção de um poder sobre outras pessoas ou para apoiar as lutas contra a opressão e a repressão? Adotamos um conceito de poder que precisa ser compatível com preceitos imutáveis sobre o mundo ou uma que seja compatível com as situações de poder que encontramos por aí? É preciso então se precaver metodologicamente6 para, resumidamente, estudar o poder como ele se exerce na prática ao invés de analisar o plano dos discursos sobre o poder.
Uma definição de poder deve ter o poder de ser atualizada, ou melhor, temos o poder de atualizá-la assim que necessário: somos nós que a fazemos ou deixamos de fazer, se a definição for nossa e não imposta. Difícil, senão impossível e até indesejável, manter uma definição “pura” de poder, livre de ingerências externas ou de uma bagagem pregressa que esteja em nossas mentes. Nossa definição não será impura porquê não existe pureza conceitual. O exercício aqui não é buscar um conceito limpo, finalizado e perfeito, senão conseguir ao menos entender quais os problemas, efeitos e consequências do conceito.
Antes de arriscarmos uma definição, é importante tomar cuidado com afirmações da universalidade do poder enquanto conceito, isto é, essencial para entender qualquer sociedade em qualquer lugar e em qualquer momento. Importa sim considerar a pertinência da questão da sua existência: haveria sociedade que poderia ser entendida sem essa noção?
Pois então, se temos uma série de noções sobre o que é poder, como podemos expressá-las num conceito, mesmo que provisório? Como é que faz?
Se assim procedermos, provavelmente estaremos não somente adotando um conceito carregado de poder como também passando longe das situações de poder que encontramos em todo canto. Não basta também e somente de botar no papel toda a série de noções sobre poder que encontrarmos, tentar resumi-las e pronto, eis a definição de poder.
Seria necessário, ao contrário, percorrer o precário caminho de usar nossas noções de poder para identificar as situações de poder para então confrontar as noções com os acontecimentos. Daí para atualizar as noções e só para muito depois arriscar uma definição.
Noutras palavras, antes de tratar formalmente do que é o poder, faríamos uma pesquisa sobre como o poder se manifesta, usando para isso nossas noções prévias sobre poder.
O processo de conceituação não parte da vontade de criar uma definição para depois tentar encontrar exemplos de ocorrências do que ela explica por aí no mundo. Ou de apenas aplicar uma noção pré-existente sem questionar seus pressupostos e de onde (e quando) ela surgiu. É antes um esforço de tentar agrupar fenômenos semelhantes dentro de um arcabouço comum que ajude a entender e incidir no mundo. O poder é talvez um caso bem especial desse processo, pois no processo de defini-lo podemos criar um saber que auxilie no enfrentamento de poderes despóticos. O poder é um conceito-bomba: pode explodir na nossa mão ou na de alguém.
A abordagem de Foucault, de baixo para cima, parece mais adequada que outras, de cima para baixo. Enquanto as de cima para baixo (utópicas) partem de pressupostos sobre o poder (a partir de considerações jurídicas, econômicas, políticas ou mesmo da guerra), abordagens de baixo para cima (distópicas) partem de como o poder ocorre em qualquer canto, em qualquer uma de suas manifestações.
Creio ser frutífero confrontar ambas abordagens: as distópicas ajudam a desvelar problemas nas construções utópicas; as utópicas funcionam como referenciais sobre como queremos ou não viver, e como vivemos de fato nesta distopia7.
O roteiro, então, é de baixo para cima, e do como para o quê, à maneira de Foucault8:
Para alguns, interrogar-se sobre o “como” do poder seria limitar-se a descrever seus efeitos, sem relacioná-los jamais nem com causas nem com nenhuma natureza. Seria fazer desse poder uma substâncla misteriosa que se esquiva de interrogar ela própria, sem duvida porque se prefere não “questioná-la”. Nessa maquinaria da qual não se conhece razão, eles suspeitam de um fatalismo. Mas sua própria desconflança não mostra que eles mesmos supõem que o poder é algo que existe com sua origem, por um lado, sua natureza, por outro suas manifestações, finalmente.
Se confiro certo privilégio provisório à questao do “como”, não é que eu queira eliminar a questão do quê e do porquê. É para colocá-las de outra maneira; melhor: para saber se é legítimo imaginar um poder que reúne um quê, um porquê, um como. Em termos bruscos, eu direi que iniciar a análise pelo “como” é introduzir a suspeita de que o poder não existe: é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdos atribuíveis se pode visar quando se faz uso desse termo majestoso, globalizante e substantificador; é suspeitar que se deixa escapar um conjunto de realidades muito complexas, quando se marca passo indefinidamente diante da dupla interrogação: “O poder, o que é? O poder, de onde vem?” A pequena questão. completamente plana e empírica: “Como acontece?”, enviada como exploradora, não tem como função transformar em fraude uma “metafisica ou uma”ontologia” do poder; mas tentar uma investigação crítica na temática do poder.
Creio que aqui passaremos longe de uma metafísica ou ontologia do poder, ou melhor, das metafísicas e das ontologias do poder, no plural. Não que seja uma questão desimportante – ela é muito importante pois nos ajuda a entender não somente os modos de viver e se relacionar que não queremos quanto aqueles que queremos, isto é, aqueles que não sejam baseados na dominação e na coação.
Mas, por agora, precisamos apenas de uma definição temporária do conceito de poder que funcione para explicar comando, controle e governo no contexto específico de analisar os processos e efeitos da digitalização.
Assim, comecemos com uma noção do que seria poder, tomando como ponto de partida a descrição dada por Mario Stoppino9:
Em seu significado mais geral, a palavra Poder designa a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos10. Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou a fenômenos naturais [sic] (como na expressão Poder calorífico, Poder de absorção).
Se o entendermos em sentido especificamente social, ou seja, na sua relação com a vida do homem [sic] em sociedade, o Poder torna-se mais preciso, e seu espaço conceptual pode ir desde a capacidade geral de agir, até à capacidade do homem em determinar o comportamento do homem: Poder do homem sobre o homem. O homem é não só o sujeito mas também o objeto do Poder social. […]
[…]
Como fenômeno social, o Poder é […] uma relação entre os homens
Essa noção parece geral o suficiente para explicar uma grande quantidade de situações, mas da maneira como está escrita padece de uma ambiguidade: primeiro o poder é formulado como capacidade ou possibilidade, para depois ser explicado como uma relação. Poderíamos entender como todas essas coisas: uma relação que depende de capacidade, comportando a existência também enquanto mera possibilidade.
Façamos então uma definição provisória sem esse problema (mas talvez com muitos outros, me ajude a descobri-los para melhorá-la!):
Poder é uma relação de produção unidirecional de efeitos (específicos) de acordo com capacidades e possibilidades. Ocorrendo a relação unidirecional de produção de efeito, diremos que trata-se de poder realizado (ou em realização; note que a palavra “real” tem um quê de “rei”, de soberano, de quem opera o poder). Se existe em possibilidade, trata-se de uma potência (ou potencialidade).
Propriedades desta definição:
Ela parece dar conta de diversas noções sobre poder: influência, interferência, ascendência, manipulação…
Ela é unidirecional. Para situações de poder efetuado mutuamente entre duas ou mais partes (como em efeitos bi-direcionais), basta dizer que existem dois ou mais poderes atuando.
Ela requer uma parte possuidora da capacidade (e que é a portadora da ação) e outra que recebe a ação, sendo modificada por esta. A parte detendora do poder não tem de ser necessariamente uma pessoa, pode ser uma “entidade” de outro tipo, como uma “figura” mental (por exemplo uma autoridade) incidindo poder numa pessoa; ou então um mecanismo qualquer que realiza trabalho sobre um corpo.
O efeito do poder afeta a parte receptora da ação. O poder produz afetos (afecções).
Não requer necessariamente, mas comporta, uma intencionalidade do poder.
Contempla atos de poder aparentemente passivos, como o olhar, apesar de que o olhar é um ato de poder multi-direcional: a luz incide em alguém e reflete para outrem etc.
Insuficiência: apesar de genérica, ela tanto não deve dar conta de várias situações quanto algumas situações que ela explica talvez não sejam relações de poder…
Totalidade: essa definição é um tanto quanto totalitária: coloca qualquer relação de afeto, ou melhor, qualquer relação – já que sem afeto não há relação –, como uma relação de poder. O poder seria a própria ação de relação em qualquer tempo verbal. Será esse mesmo o caso? Bom, se tudo é poder… nada é poder, não é mesmo? Uma definição que se aplica a qualquer coisa não nos serve mais para diferenciar ou avaliar uma situação de outra. Agora que temos uma definição bem genérica do que é poder, convém aplicar algumas restrições sobre seu campo de aplicação.
Para representar essa relação de poder, usaremos “diagramas de poder”, com flechas (ou setas) indicando a ação, que chamaremos de linhas de ação conectando seres – ou “entes”, pessoas, maquinarias etc. Por exemplo, uma conexão entre um ser emissor de uma ação e um ser receptor desta ação:
_____________ _____________ | | ação | | | emissor |------------>| receptor | |_____________| |_____________|
Em relações de poder bi-direcionais, teremos situações:
_____________ _____________ | | ação 1 | | | |------------>| | | atuante 1 | | atuante 2 | | |<------------| | |_____________| ação 2 |_____________|
As relações também podem ser desenhadas em diagramas hierárquicos ou até, no caso geral, como relações em rede11:
O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.
Com todas essas implicações em qualquer ação, haveria possibilidade de ação não-imperativa, logo de partida?
Uma relação não-imperativa envolveria, logo de início, perguntar se o indivíduo permite a ação de ocorrer. Mas isto apenas move o problema de lugar: o mero ato de perguntar ao indivíduo já constitui uma ação que já pressupõe um outro. Os atos de comunicação também seriam atos de poder imperativo?
E mais: se atos de comunicação são atos de poder, quais outros tipos de atos também mercem menção e diferenciação, dadas suas importâncias e particularidades dentro do escopo desta discussão?
Se continuarmos seguindo o esquema de Foucault, distinguiremos especialmente um poder “social” de outros, comunicacionais e objetificadores12:
Desse poder [social], deve-se distinguir primeiro o que se exerce sobre as coisas [isto é, não-humanos ou não-viventes] e que dá a capacidade de modificá-las, utilizá-las, consumí-las ou destruí-las – um poder que remete a aptidões diretamente inscritas no corpo ou mediatizadas por dispositivos instrumentals. Digamos que se trata aí de “capacidade”. O que caracteriza, em compensação o “poder” que se trata de analisar aqui [poder social] é o que coloca em jogo relações entre indivíduos (ou entre grupos) [humanos]. Porque não devemos nos enganar quanto a isto: se falamos do poder das leis, das instituições ou das ideologias, se falamos de estruturas ou mecanismos de poder, é na medida somente em que supomos que “alguns” exercem um poder sobre outros. O termo “poder” designa relações entre “parceiros” (e por isso não penso em um sistema de jogo, mas simplesmente ficando, no momento, na maior generalldade, em um conjunto de ações que se induzem e se correspondem umas às outras).
É necessário distinguir também as relações de poder das relações de comunicação que transmitem uma informação por meio de uma língua, um sistema de signos ou qualquer outro melo simbólico. Sem dúvida, comunicar é sempre certa maneira de agir sobre o outro ou os outros. Mas a produção e a colocação em circulação de elementos significantes podem muito bem ter por objetivo ou por consequências efeitos de poder; estes não são simplesmente um aspecto daquelas. Que elas passem ou não por sistemas de comunicação, as relações de poder têm sua especiflcidade.
Relações de poder”, “relações de comunicação”, “capacidades objetivas” não devem, pois, ser confundidas. O que não quer dizer que se trate de três domínios separados; e que haveria por um lado, o domínio das coisas da técnica finalizada do trabalho e da transformação do real; por outro lado, o dominio dos signos, da comunicação, da reciprocidade e da fabricação do sentido; enfim, o dominio da dominação dos meios de obrigação, da desigualdade e da ação dos homens sobre os homens.
Não se trata de três tipos de relações que, de fato, são sempre imbricadas unas nas outras. dando-se um apoio recíproco e servindo-se mutuamente de instrumento. A operacionallzação de capacidades objetivas, em suas formas mais elementares, implica relações de comunicação (quer se trate de informação prévia ou de trabalho dividido); ela está ligada, também, a relações de poder (quer se trate de tarefas obrigatórias, gestos impostos por uma tradição ou uma aprendizagem, subdivisões ou repartição mais ou menos obrigatória de trabalho). As relações de comunicaçãoo implicam atividades finalizadas (funcionamento “correto” dos elementos significantes) e, somente no fato de modificar o campo informatlvo dos parceiros, elas induzem efeitos de poder. Quanto às proprias relações de poder, elas se exercem para uma parte extremamente importante por meio da produção e da troca de signos; e não são dissociáveis também das atividades finalizadas, quer se trate das que permitem exercer esse poder (como as técnicas de treinamento, os processos de dominação, as maneiras de obter a obediência) ou das que recorrem, para se desenvolver, a relações de poder (assim na divisão do trabalho e na hierarquia das tarefas).
É claro, a coordenação entre esses três tipos de relações não é nem uniforme nem constante. Não há em certa sociedade um tipo geral de equilíbrio entre as atividades finalizadas, os sistemas de comunicação e as relações de poder. Há, antes, diversas formas, diversos lugares, diversas circunstâncias ou ocasiões em que essas inter-relações se estabelecem sobre um modelo especifíco. Mas ha também “blocos” nos quais o ajustamento das capacidades as redes de comunicação e as relações de poder constituem sistemas regrados e concertados. Seja, por exemplo, uma instituição escolar: sua disposição espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades que aí são organizadas, os diversos personagens que aí vivem ou se encontram, cada um com uma função, um lugar, um rosto bem-definido: tudo isso constitui um “bloco” de capacidade-comunicação-poder. A atividade que garante a aprendizagem e a aquisição das aptidões ou dos tipos de comportamento aí se desenvolve por meio de todo um conjunto de comunicações regradas (lições, questões e respostas. ordens, exortações. signos codificados de obediencia, marcas diferenciais do “valor” de cada um e dos niveis de saber) e por meio de toda uma série de procedimentos de poder (encerramento, vigilância, recompensa e punição, hierarquia piramidal).
Esses blocos em que a operacionalização de capacidades técnicas, o jogo das comunicações e as relações de poder são ajustados uns aos outros, segundo fórmulas refletidas, constituem o que se pode chamar, ampliando um pouco o sentido da palavra, de “disciplinas”. […]
E o que se deve entender pela disciplinarização das sociedades a partir do século XVIII, na Europa, não é, com certeza, que os indivíduos que dela fazem parte se tornem cada vez mais obedientes: nem que elas se ponham todas a se parecer com casernas, escolas ou prisões; mas que aí se procurou um ajustamento cada vez mais bem controlado – cada vez mais racional e econômico – entre as atividades produtivas as redes de comunicação e o jogo das relações de poder.
Me parece que Foucault se embananou um pouco ao usar nomes distintos para três tipos do poder, o que acaba tornando sua explicação um tanto quanto confusa. Entendo que ele queria distinguir o poder de que ele se preocupa dos outros tipos de relações, que seriam mais auxiliares em sua análise. Mas procedendo assim ele criou alguns problemas de entendimento. Creio que isso possa ser arrumado com um pequeno ajuste terminológico. Longe de clamar conhecimento completo e entendimento correto da obra de Foucault, adaptarei um pedaço dela para formular uma mini-teoria em três linhas de poder:
Poder objetivo, de exercer fisicamente uma força para obter um resultado físico em objetos, não em outro seres como humanos. Este poder incidente nos objetos, isto é, poder de incidência objetivo, Foucault chama de “capacidades objetivas”. Me parece que o uso do termo “objetivo” implica tratar-se de ações incidindo nos corpos enquanto “objetos”, isto é, enquanto corpos passivos, que não reagem, ou reagem passivamente, resistindo, entendendo “resistência” tal como a elétrica, que “resiste”, isto é, oferece uma “inércia”, passiva, à passagem de corrente[^poder-resistencia].
Poder subjetivo, ou social, ou, no vocabulário foucaultiano, simplesmente poder. É o poder exercido em humanos, talvez também noutros animais, de modo que são os sujeitos do poder. Enquanto sujeitos, tanto estão sujeitados à ação quanto podem reagir a ela, revidando também com ações, isto, é, demonstrando poder, trazendo um contra-poder à relação. É sobre esse poder que Foucault se ocupou na maior parte de sua obra.
Poder projetivo, simbólico, comunicacional, ou informacional, relacionado aos efeitos causados em indivíduos pela mera comunicação. Considero este como um poder projetivo, por antecipar outras ações.
Exemplifcando, podemos “decompor” uma linha de ação nestes três tipos de poder em exercício:
_____________ _____________ | | ação objetiva | | | |---------------------->| objeto | | | | | | | ação subjetiva | | | emissor |---------------------->| sujeito | | | | | | | ação projetiva | | | |---------------------->| projeto | |_____________| |_____________|
Ações objetivas-subjetivas-projetivas constituem um objeto-sujeito-projeto, que aqui simplificadamente chamaremos apenas de “sujeito”. Em casos mais simples, a quem recebe a ação será apenas um objeto, ou projeto, por exemplo:
_____________ _____________ | | ação objetiva | | | emissor |---------------------->| objeto | |_____________| |_____________|
Já no caso de uma relação bi-direcional, pode haver “produção” de sujeitos dos dois lados (ou “pólos”):
_____________ _____________ | | ação objetiva 1 | | | |---------------------->| | | | | | | | ação subjetiva 2 | | | |---------------------->| | | | | | | | ação projetiva 3 | | | |---------------------->| | | sujeito 1 | | sujeito 2 | | | ação objetiva 2 | | | |<----------------------| | | | | | | | ação subjetiva 2 | | | |<----------------------| | | | | | | | ação projetiva 2 | | | |<----------------------| | |_____________| |_____________|
Diagramas de poder bi-direcionais podem ficar muito grandes e de difícil compreensão. No caso da existência de ações bi-direcionais, representaremos com setas nos dois lados da linha de ação. Desta feita, o diagrama anterior poderia ser simplificado neste aqui:
_____________ _____________ | | ações objetivas | | | |<--------------------->| | | | | | | | ações subjetivas | | | sujeito 1 |<--------------------->| sujeito 2 | | | | | | | ações projetivas | | | |<--------------------->| | |_____________| |_____________|
Em última instância, se buscamos uma ontologia do poder, temos a opção de afirmar que todo poder se reduziria a um poder objetivo, ligado à física, à physis, ao próprio “tecido da realidade”. Poderes subjetivos e projetivos (simbólicos) seriam casos especiais desse poder objetivo, como “epifenômenos”, ou fenômenos ditos “emergentes”, isto é, propriedades novas surgidas a partir de interações (“inter-ações”, admitindo respostas às ações prévias) mais básicas, fundamentais. Mas fiquemos, por agora, com o esquema de Foucault e por nós modificado, pois ele nos ajuda a explicar o que é o controle e como ele opera.
Também podemos pensar em diagramas cada vez mais complicados, por exemplo indicando o tempo (ou a sequência) em que as ações ocorrem, ou qualificando se as linhas de ação se referem a ações únicas ou contínuas. Podemos. Esse “simples” podemos é um indicativo de que a operação de poder não consiste somente nestas ações que representamos em diagramas, como já de partida a própria concepção do que são os indivíduos participantes nessas relações. Desde já notamos o perigo de lidarmos com o conceito de poder: logo de cara acabamos já por definir os indivíduos que sofrem o poder13:
Não se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou estraçalhando−os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu.
Ou seja, quando desenhamos este diagrama e nomeamos relações de poder, em qual posição estamos nos imaginando ou nos colocando? Isto é, a partir de qual perspectiva estamos enunciando essas relações? Ao fazermos isso, passamos a fazer parte destes diagramas de poder?
Se estivéssemos por aí dizendo pras pessoas que tipo de relações julgamos que elas elas tem entre elas, teríamos que nos incluir neste diagrama e seríamos um poder projetivo enunciador, que nomeia quem são as partes e quais são as relações. No seguinte exemplo, uma ação projetiva é efetuada num outro “bloco” de relação, efetando tanto emissor quanto receptor deste outro bloco:
_______________________________________ ____________ | __________ __________ | | | ação projetiva | | | ação | | | | enunciador |---------------->| | emissor |------------>| receptor | | |____________| | |__________| |__________| | |_______________________________________|
Essa ação projetiva de enunciar o que está acontecendo enquanto uma relação de poder entre outro outro emissor e outro receptor só passa a “valer”, isto é, ser uma verdade produzida – uma verdade no sentido de produzir outros efeitos, isto é, ser causa de outros efeitos – quanto outros entes do diagrama passam a considerá-la como verdade que define a relação entre eles.
No caso do presente texto que você está lendo, haveria a seguinte relação projetiva:
________ ________ | | | | | | ação projetiva | | | eu |----------------->| você | | | | | |________| |________|
Esta ação projetiva, que iniciei ao escrever este prólogo sobre o poder, chega até você ao lê-lo. Num nível, esta ação é composta pelos enunciados do texto – “poder é isso, poder é aquilo etc” –, enquanto noutro ela implicitamente assume a existência de um “eu” e de um “você” enquanto entes separados no mundo dividido em partes e ações discerníveis e diferenciáveis. Mesmo esta ação projetiva de enunciados já cria uma implicação entre nós, pois você pode falar bem ou mal de mim ou do que escrevi – a depender da eficácia da ação projetiva de inscrever uma “verdade”, mesmo que local ou temporária, na sua mente –, produzindo outras ações projetivas noutros entes. Não poderíamos, ao invés disso, nos entender como partes implicadas de um ente maior e também de outros entes? A quem compensa pensar que realmente somos seres separados? A separação parece ser condição necessária, mas não suficiente, para a dominação… o clássico “dividir e conquistar” que aqui, no caso, começa por “enunciar” e “nomear”.
Podemos até nos perguntar sobre aquilo que é nomeado como “ação”. Existe um entendimento alternativo de conceito de ação dentro do que na gramática chama-se de “voz média”, designando situações onde não se diferencia as partes emissoras e receptoras das ações, indo além das ações bi-direcionais: expressar ações dentro da voz média implica em em correspondências e reciprocidades difíceis, senão impossíveis, de serem separadas em linhas de ação específicas. Uma ação em voz média é mais como uma associação e como um diálogo efetivo. Ao menos em vários idiomas vindos das regiões do mundo denominadas de “Ocidente”, houve com o passar dos tempos uma diminuição do uso da voz média, até esta sumir da prática corrente (e das gramáticas), sendo substituída cada vez mais por vozes discursivas mais imperativas e unidirecionais, até os nossos dias em que as comunicações tem sido mais e mais reduzidas a dois tipos de enunciados: “ordens” e “informes”, como trataremos a seguir. A linguagem é também uma tecnologia de poder, especialmente quando é sistematizada em “gramáticas”.
Para concluir esta brevíssima exposição sobre o poder, é importante tratar da eficácia das ações, ressaltando que uma ação pode ter inúmeros efeitos. Talvez seja muito difícil considerar uma ação que tenha zero efeitos – talvez isso não exista, talvez o requisito de uma ação seja ter no mínimo algum efeito. Por agora, consideremos que ação tenha zero ou mais efeitos. Tais efeitos ocorridos podem ou não ser os efeitos intencionados pelo emissor da ação. Não há garantia a priori de que uma ação trará os efeitos almejados por quem a efetua. A seguir, trataremos de como tecnologias de poder são utilizadas para garantir que os efeitos obtidos sejam compatíveis com os efeitos intencionados.
5.1.2 Controladoria
Controle é uma palavra frequentemente usada nos estudos de tecnologia, inclusive naqueles centrados na questão do poder. Curiosamente, mesmo estudos bem detalhados acabam por assumir uma noção usual de controle, sem entrar em muitos detalhes sobre a que exatamente está a se referir.
O caso de Foucault é um dos exemplos disso. Controle, em Foucault14, parece ser um termo corriqueiro (Focault o utiliza várias vezes e significativamente ao longo de sua obra) e não uma categoria analítica tal como “poder” ou “disciplina”. Mas ele indica a relação entre disciplina – um “bloco” de poder objetivo-subjetivo-simbólico – e controle: a disciplinarização enquanto dispositivo de controle.
Disciplina, para Foucault, é um bloco de “capacidade-comunicação-poder” (em termos focaultianos), mas que chamaremos de um bloco de poder objetivo-subjetivo-simbólico, isto é, um bloco de poder incidente tanto em objetos quanto em pessoas, dependente de comunicação e que produz sujeitos.
O controle, tal qual definiremos a seguir, tem as seguintes características:
É uma operação (“opera-ação”, uma ação de trabalho) de poder que pode ser entendida tendo suas instâncias simbólicas usadas na comunicação com quem (ou o quê) controla o dispositivo e também com quem (ou o quê) é controlado; ocasionando ações objetivas em alguém (ou em algo) com impacto no ser (ou em seres) social (sociais), produzindo este enquanto sujeito.
A noção de “bloco” aqui é fundamental: blocos podem ser dispostos, transportados, removidos etc. É uma característia do controle operar enquanto um dispositivo “de bloco”.
O dispositivo de controle é um poder com uma autonomia limitada: ele opera um poder específico e limitado, instalado por um controlador. O dispositivo de controle opera com uma certa autonomia para que o controlador não precise cuidar de todos os detalhes de excercimento do poder. Na linguagem do controle, oriunda do linguajar jurídico, um operador (ou “detentor”) de poder (um controlador) “delega”, ou “terceiriza”, poder para um dispositivo de controle.
Por quê insisto tanto na discussão sobre Foucault? Ora, mostrarei quanto seus entendimentos de poder, disciplina etc explicam bem – com alguns ajustes – um conceito de controle formulado a partir de um roteiro histórico.
Comando:
Num entendimento inicial, díriamos que comandar consiste em dar ordens, afinal, a palavra comando vem:
- Do francês antigo comandare:
- Do latim ….
- Do latim mandō15:
Podendo significar tanto ordem quando passar de mão (“hand over”), registrar (em papel ou na memória), comissionar, delegar, dar instruções, reportar.
Vinda de manus16, cujo significado mais básico é “mão”, mas que também é usada para uma série de ações manuais.
Mas quem consegue dar ordens efetivas sem saber o que está acontecendo?
Comandar então consiste em receber informes e dar ordens para obter (ou manter) um estado esperado. O comando define as normas do que é um resultado/estado esperado.
Quem comanda não precisa cuidar de todos os detalhes do que é preciso fazer para atingir o estado esperado, já que isso é um trabalho de controle. Assim, o comando lida com decisões e intervenções ditas de “alto nível”.
Comandar tende a ser um ato autoritário, não admitindo diálogo entre quem comanda e recebe comando. O motivo ou objetivo da ordem não requer explicação ou justificação.
O quando comando é diferente de ordem?
Comando e ordem: de mesa origem, dentro de uma metafísica de ordenar o caos.
Diferenciação entre esses termos, associadas à divisão e compartimentalização das atividades.
Comando, quem comanda; dar um comando.
Ordem: uma disposição de objetos, pessoas etc que respeite uma intenção; dar uma ordem.
Dar uma ordem: arranjar itens, pessoas, coisas etc numa determiada configuração; mandar alguém pra fazer isso.
Probabilidade de uma ordem/comando ser efetivo.
Comando (e/ou ordem):
Ação projetiva que eventualmente faz com que um outro produza uma ação, cujo conteúdo (enunciado) foi dado na ação projetiva original?
Relê (Simondon) de ação.
Genealogia em “What is a Command?”, Agamben (2019).
Hier-arquia: regramento verticalizado: cadeia vertical de comando.
Controle: manter algo em funcionamento, isto é, operando dentro de uma margem mais estreita de comportamento esperado, ou seja, dentro da norma de comando. Para isso, quem controla precisa saber a situação daquilo que é controlado, para, no caso de desvio em relagação à norma de funcionamento, correções sejam aplicadas.
Diferentemente do comando, controle implica em lidar com todos os detalhes relevantes e necessários para atingir o objetivo: controle trata das decisões e intervenções de “baixo nível”.
Controle também é uma atividade de tendências autoritárias: apesar da constante troca de informação entre ambos, não há negociação entre controlador e controlado sobre quais são as normas de funcionamento esperadas.
A palavra controle é mais recente do que comando.
Controle pressupõe uma comunicação constante entre controladoria e controlado, podendo redundar em vigilância constante.
Como o poder é exercido: ordens, comando, controle:
- Comando e Controle (C2) são divisões hierárquicas de saber-poder:
- Num dado “nível” (departamento etc), o Comando e Controle pode ser tratato por um nível hierárquico superior como Controle.
- Comando e Controle (C2) são divisões hierárquicas de saber-poder:
Questão da delegação do poder pela impossibilidade de exercê-lo plenamente por conta própria.
Quem fiscaliza o fiscal? Quem vigia o vigilante? Questão das mais antigas. Juvenal cibernético.
Controle: para além da servidão voluntária.
Exemplo da relação entre Comando e Controle (C2) no meio militar-corporativo:
“Understanding Command and Control”, Alberts e Hayes (2006) págs. 57-60:
COMMAND
The establishment and communication of the initial set of conditions, the continuing assessment of the situation, and changes to intent are the functions of command […]
[…]
CONTROL
The function of control is to determine whether current and/or planned efforts are on track. If adjustments are required, the function of control is to make these adjustments if they are within the guidelines established by command. The essence of control is to keep the values of specific elements of the operating environment within the bounds established by command, primarily in the form of intent.
Governo:
Num entendimento mais geral, é o conceito mais complexo dentre os três. Sem entrar em muitos detalhes, podemos dizer que a noção de governo assume uma negociação entre governantes e governados – cujo limite seria a máxima zapatista do “mandar obedecendo” –, cabendo até uma indiferenciação entre quem governa e quem é governado – no caso da autogestão. O governo seria o conceito que mais assume e necessita de diálogo para funcionar: não se trata somente de obter informações sobre o estado de coisas, como de discutir entre diversas partes, frações ou partídios políticos antes de decidir o que deve ser feito. Importante entender que a noção de governo é mais geral, cabendo situações em que ele não passa de Comando e Controle. Por exemplo, um governo autoritário acaba decaindo para Comando e Controle social. No entanto, o conceito de governo é muito mais que isso e tem uma longa história, e não será tratado aqui com muita profundidade.
A palavra governo tem uma origem muito antiga.
Governos podem ser estruturados dentro de cadeias C2: um governo geral dividido em ministérios de Comando e Controle. Governos multi-parte como o tri-partite civil Executivo, Legislativo e Judiciário também podem ser entendidos cada qual com sua cadeia C2; etc.
Governo (e “governamentalidade”) em Foucault: a “condução de condutas” (governo, poder) e sua relação com o conceito de controle:
- Em Castro (2009) págs. 188-193.
Diagrama bem esquemático com uma hieraquização possível destes conceitos:
- Governo:
- Controle:
- Comando:
- Ordem.
- Comando:
- Controle:
- Governo:
Genealogia do controle:
Expressão que vem das finanças, especificamente da contabilidade.
“Control, organization, and accounting: A genealogy of modern knowledge-power”, K. Hoskin (1992), incluindo:
- Engendramento, ainda na Idade Média, de técnicas que futuramente comporiam a estadística que permitiriam lidar com o “invisível” – aquilo que extrapola a capacidade humana de visualizar, conforme discorrido no texto de Rhatto (2024b).
Explicação mais detalhada em “Accounting and the examination: a genealogy of disciplinary power”, K. W. Hoskin e Macve (1986).
Sobre rotulus, Clanchy (2012).
Estágios:
Agir, pensa-agir.
Demandar: ordenar com as mãos.
Do pensamento para a ordem oral:
Discussão de R. C. Chomsky Noam; Berwick (2017).
Uma comunicação oral pode ser convertida em pensamento, e vice-versa. Numa passagem para outra, pode haver tanto perda quanto ganho de conteúdo: o pensamento ou a mensagem originais não são necessariamente preservadas.
Da ordem oral para a registrada e transmitida (escrita):
Uma ordem oral pode ser convertida em ordem escrita, e vice-versa. Mas por quê alguém em sã consciência se daria ao trabalho de converter uma mensagem oral para escrita para que esta possa, em seguida, ser novamente convertida em ordem oral?
Um motivo seria de que escrita poderia, com mais facilidade, atravessar distâncias de tempo ou espaço sem perda ou modificação de conteúdo.
Mas isso parece ser mais fama que façanha: a escrita tem sua própria fragilidade por depender de suportes materiais que não se renovam “automatiamente”: argila, papiros, papéis, “discos rígidos” e outras “mídias” (meios) necessitam de manutenção e boa conservação que garantam a dura-bilidade, enquanto que outros meios mais “moles” (maleáveis/flexíveis) como comunidades humanas conseguem replicar e renovar tradições orais ao longo de milênios.
A passagem para escrita parece ter outras motivações:
Facilidade e rapidez para registro e a comunicação de situações e ordens numa cadeia de comando.
Registros escritos podem ser armazenados e consultadas no futuro, ou seja, permitem a documentação e o estabelecimento de arquivos.
A escrita articula um outro regime de memória coletiva. No caso das ordens e ações ordenadas, ela permite a:
Prescrição (ordens previamente escritas).
Acumulação de documentos que permitam a realização de análises e conclusões.
Barateamento e descartabilidade: ordens escritas podem ser enviadas por mensageiros que não necessitam de treinamento especial para memorização e interpretação. Mensageiros que apenas entregam comunicações podem ser facilmente substituíveis.
A existência de ordens escritas não é recente, mas sua primazia em detrimento de ordens transmitidas oralmente é cada vez maior.
A leitura também passa a ser feita em silêncio, ao invés de em voz alta.
A estruturação da escrita:
Crescente divisão: espaços entre palavras, frases, parágrafos, capítulos etc.
Ordenamento: ordem alfabética.
Numeração: a introdução do sistema numérico decimal na notação indo-arábica, incluindo o número zero, numa expansão do alfabeto usado para o alfanumérico.
Tabulação.
Cópia (duplicatas) para checagem e salvaguarda (“backup”).
De onde vem a possibilidade de uma margem de operação, ao invés de um comportamento exato? Talvez esta seja a contribuição da cibernética à noção contemporânea de controle.
Controle: etimologia (rápida?):
Hoad (2002) pág. 95.
Onions (1966) pág. 211.
Chantrell (2002) pág. 118.
Controlar implica em ter uma duplicata em algum lugar, um modelo ou referência para comparar e checar o andamento. Isso já está na etimologia da palavra, como por exemplo em Chantrell (2002) pág. 118:
The early sense of the verb was ‘check or verify accounts’: this was usually by making reference to a duplicate register. […] A controller, recorded in Middle English, was a person who kept a duplicate accounts register
Contra-rotulagem, contra-rótulo, contra-rolo:
Registro principal.
Registro secundário (duplicata).
Registro terciário (resumo, extrato, sumário, “checksum”).
Sobre o conceito de controle:
“The Concept of Control”, Elkus (1907).
“Problemi filosofici del controllo”, Giordani e Mari (2012).
“O Poder de Controle na Sociedade Anônima”, Comparato e Filho (2014), incluindo:
Controle: poder jurídico moderno oriundo da hierarquização de funções, Comparato e Filho (2014) - Prefácio do Autor:
O controle é, pois, a prerrogativa possuída pelo titular de um poder superior de impor suas decisões sobre o titular de um poder inferior. Nesse sentido, ele discrepa radicalmente da dominação direta, exercida pelo senhor, amo ou patrão sobre seus servos, dependentes ou empregados.
Eis porque o controle é o poder jurídico moderno, próprio das sociedades ou organizações complexas, nas quais se manifesta necessariamente uma hierarquização de funções. Ele é, também, o poder de fato, exercido ab extra sobre os administradores de uma pessoa jurídica privada, ou sobre os que detêm oficialmente o poder político.
Controle no “Vocabulário de Foucault”, Castro (2009) págs. 85-86.
O quanto “controle” é distinto de “regulação”, de “fiscalização” e “exame”?
Notável que o contra-rolo continha um resumo, um extrato do que seria mais importante tanto para prestação de contas, auditorias quanto para “tomadores de decisão executivos” que não querem ou não podem se ater a detalhes específicos e utilizam apenas uma visão geral para tomar decisões.
Considero então estas as características fundamentais do contra-rolo que genealogicamente se desenrolaram no atual conceito de controle:
Um registro adicional sobre a operação de algo.
O formato resumido desse registro adicional, contendo apenas aquilo que é fundamental para entender a situação geral de algo e permitir uma tomada de decisão sobra a situação futura de algo.
O entendimento da situação atual influi na decisão: se algo se desviou de uma expectativa, a decisão deve ser de interferir em algo para que seja corrigido. Do contrário, este algo pode continuar “seguindo seu curso” sem interferência externa.
O contra-rolo aponta para algo, é meta-referencial.
Ainda existe (e muito) poder verticalizado, mas o poder para que pudesse ser exercido foi sendo, paradoxalmente, distribuído tanto vertical quanto horizontalmente. E a maneira de fazer isso é através do “controle” e da sua delegação.
Controle Social, Norberto Bobbio (2004) págs. 283-285.
Controle em “The Division of Labour in Society”, Durkheim (2013).
Controle e comunicação, Norbert (1989) pág. 16:
In giving the definition of Cybernetics in the original book, I classed communication and control together. Why did I do this? When I communicate with another person, I impart a message to him, and when he communicates back with me he returns a related message which contains information primarily accessible to him and not to me. When I control the actions of another person, I communicate a message to him, and although this message is in the imperative mood, the technique of communication does not differ from that of a message of fact. Furthermore, if my control is to be effective I must take cognizance of any messages from him which may indicate that the order is understood and has been obeyed.
Definição de controle em Beniger (1986) págs. 7-9. Crítica em Peters (1987).
Controle protocolar em Galloway (2004).
“Control Culture: Foucault and Deleuze after Discipline”, Beckman (2018).
Primeiro uma curiosidade curiosa porém não espantosa: quanto mais uma autoria está associada ao ensejo de controlar, mais bem definida está a definição de controle! Os manuais militares de Comando e Controle parecem os que mais fazem uma definição precisa, enquanto que pensadores como Foucault, Deleuze e Burroughs usam muito a palavra controle (assim como poder), mas sem jamais definí-la.
Controle: modulação: contribuição de Gilbert Simondon (2010) via Rantala e Muilu (2024).
Descontrole: interferência.
Nossa definição, mesmo que provisória e incompleta: controle é um poder que opera a partir de regras pré-definidas, que precisa prestar contas a uma instância de controle “superior”, recebendo desta as instruções (“parâmetros”) para garantir comportamentos de instâncias de controle “inferiores”. Essas “contas prestadas” são comunicações de status.
Controle parece implicar numa delegação limitada e temporária de poder.
Incidir numa situação, processo ou operação, para que ela satisfaça uma expectativa.
Controle: garantia de que os efeitos obtidos sejam compatíveis com os efeitos intencionados.
Comparação (por diferenciação) para conferência, identificação e correção (ajuste) de “erros”.
“Experimento de controle”:
- “The Counter-Roll in Science”, Allchin (2020), incluindo:
Allchin (2020) págs. 190-191:
The strategy of the counter-roll does not depend on setting up and conducting a novel lab or field experiment. It is all about the comparison and regulating the possible errors in inference.
[…]
Without a second test to check, the conclusions remain open to alternative explanation and possible error. What matters is the comparison, the counter-roll. As illustrated in the many cases above, identifying and ruling out possible sources of error is central to the reliability of science and thus to its public credibility. And that is why, ultimately, the unassuming counter-roll found a place in science, as the hallmark of controlled experiments – and of good science.
- “The Counter-Roll in Science”, Allchin (2020), incluindo:
Confrontar algo, comparando coma referência esperada, interferindo/alterando conforme necessário.
O controle tem algo de auto-controle, de autodisciplina para exercer uma disciplina, de exame, saber-poder etc.
O encontro de uma nova técnica com um novo modo de produção nem sempre é imediato. Alguns inventos ocorrem “à frente do seu tempo”. Técnicas oriundas da contra-rotulagem difundiram-se inicialmente de modo lento.
O conceito de controle tem essa origem disciplinar e contábil, que aos poucos foi passando para outras áreas.
Controle é um tipo de relação de poder, mais regrado mas ainda assumido uma margem de indeterminação daquilo que é controlado. O controle permite alguma margem, não é esse o problema do controle. O problema é tudo aquilo que escapa da margem: isto já é descontrole.
Controle não é o único modo regrado/regulado de poder. Outros modos poder ser concebidos.
O que seria um “control freak”?
“Ordens” (imperativo) e “informes” (declarativo: “atualizações de status”):
Os dois tipos de comunicação predominante hoje.
“Pokas ideia”.
Destruição do diálogo efetivo.
Controle não diz respeito apenas a pessoas, como também a maquinaria em geral e também no específico. Exemplos:
Controlar o movimento muscular.
Um termostato.
Controle populacional.
Controle está em todo processo.
Tem quem controla e quem é controlado.
Existe controle em vários níveis.
Em cada nível há processo.
Essas divisões sociais não dizem respeito somente à realização do trabalho, assim como também à administração da punição e à gestão de pessoas consideradas socialmente desviantes.
A divisão de atividades e de controle sobre elas penetrou até aos indivíduos: o auto-controle ocorre em pessoas que já estão deixando de ser indivíduos e passam, como diz Deleuze17, a serem divíduos, divididas em muitas partes, como numa cadeia complexa de comando e controle interior.
Tendências para que instâncias de poder tornem-se cada vez mais instâncias de controle, sem excluir a disputa de atores que procuram controlar sem serem controlados. Mas haverá mesmo uma possibilidade de controlar sem estar sob controle? Controla-se alguém aqui, alguém ali, mas sem estar no controle total do próprio metabolismo, da própria dinâmica celular, dos próprios esquemas de pensamento…
Sobre autoridade e autoritarismo.
Faria então algum sentido falar em Controle Popular? Se sim, no que consistiria? O que aproveitaria das tecnologias de controle, e o que jogaria fora? Ou se trataria de algo completamente diferente? Ou devemos falar de Governo Popular? Não ousarei tentar responder essas perguntas agora, pois assim não deixaria espaço para continuação do texto a seguir, 16 anos mais jovem.
Esta micro-teoria sobre poder, controle, comando, ordem e governo que acabamos de esboçar nos dá o poder de passar agora para a discussão sobre o que é o digital.
5.1.3 Termal e digital
Termodinamizando.
Termodigitalizando.
Entropia:
Havia indústria na Idade Média, e até mesmo antes.
Mas o século XIX aprofunda esse proceso, e de modo revolucionário.
Naquela época ocorre uma transição em parte da fonte de trabalho.
Motores.
Motores a vapor.
Queimar carvão para aquecer água e girar um pistão.
Surge a ganância de querer extrair o máximo de movimento (ou trabalho, como quiser) dessas máquinas. Mais movimento extraído, mais trabalho realizado, mais bens são produzidos a um menor custo.
Ou seja, como extrair o máximo do calor disponível e convertê-lo ao máximo em capital.
Ou seja, como controlar totalmente esse processo para usar a maior quantidade de movimento disponível nas fábricas.
Esta foi a principal preocupação da nascente termodinâmica, a ciência do calor, que é tanto fenomenológica quanto empírica, porque ela tira conclusões a partir de situações práticas.
Chegaram à conclusão que não há como aproveitar todo o calor das caldeiras e do movimento dos motores… sempre um tanto se perde.
Explicações dadas: por conta de atrito, interações diversas etc.
Essa limitação é expressada pelo conceito de entropia e o seu fatal aumento.
Grosso modo, na termodinâmica, a entropia é a energia que está indisponível.
Pode ser a energia que se perde, mesmo que uma máquina esteja termicamente isolada do ambiente.
Resumo dos três preceitos da termodinâmica, elevados a “leis naturais”.
Ainda assim, a termodinâmica compõe uma série de técnicas para aumentar a eficiência de máquinas até esse limite.
Entropia: etimologia (rápida?), incluindo:
- A observação de que outro nome ou expressão poderia ter sido usada, como “calor perdido”, vide Cooper (1968) pág. 331.
Representação:
Quantificação.
Discretização.
Codificação.
Representação.
A digitalização é a representação a partir da quantificação discreta.
Compressão.
Digitalização:
É uma técnica para controlar a memória e a comunicação.
É uma técnica de escrita para dar mais precisão às cadeias de Comando e Controle.
Analógico: explicar.
Exemplo das cores:
Paleta.
Arco-iris.
Tamanho da paleta.
Associação com nomes, letras ou números.
Perda de cores na digitalização.
Todas As Cores São Lindas (ACAB, All Colors Are Beautiful):
Mas o que é cada cor é relativo!
Verde/azul escuro em Guarani: ovy, Dooley (2016) págs. 138-139.
Os vários nomes para os vários brancos de alguns povos do círculo polar ártico? Controverso: https://en.wikipedia.org/wiki/Eskimo_words_for_snow
Exemplo dos sons:
Sons e partiturização.
Nota não é timbre.
A própria compreensão da fala humana tem um quê de digitalização: associa sons de vários timbres, volumes etc a fonemas.
Exemplo das texturas e calores.
Exemplo dos cheiros e sabores.
Digitalizar é como usar um termômetro especial e atribuir um número à leitura da escala. Esse “termômetro” pode ser para quantificação de calores, mas poderia ser um “termômetro” de sons, cores, texturas, cheiros ou sabores.
Assim como a termodinâmica auxilia na extração mais eficiente possível de calor útil numa máquina, a digitalização ampara maneiras mais eficientes de codificar, transmitir e receber mensagens (ou fenômenos que são medidos) e garantir sua integridade. Ambas tratam de controlar seus objetos.
Amostragem com margem de erro (ou incerteza):
Quantos valores analógicos distintos podem ser representados por um mesmo valor digital? Similar ao problema da mecânica estatística da quantidade de microestados possíveis num mesmo macroestado.
Questão da “resolução” da medição: incerteza de zero ao infinito, entropia mínima e máxima.
Discussão dos “dígitos” etc atualmente em Rhatto (2024c).
Uma coisa é a digitalização.
Outra é quem define que as máquinas precisam ser digitais….
Limites do controle:
5.2 Sobre o poder
Anotações e pontos levantados durante a pesquisa sobre o “poder”, a serem integrados nos “Prolegômenos do Editor” ou constarem aqui neste caderno de anotações.
Poder em geral:
Breve etimologia da palavra “poder”.
“Poder social” no dicionário de política, Norberto Bobbio (2004) págs. 933-943.
Introdução: Lebrun (1981), incluindo:
- Poder e potência, Lebrun (1981) págs. 10-12.
Restrições e especificações do que é o poder a depender do contexto a que estamos nos referindo. Aristóteles, Weber, Parsons etc.
Direcionalidade e também (as)simetria.
Ficções sobre o poder, o Estado etc.
Poder em todas as relações:
Ascendência de uma pessoa dobre a outra etc.
Poder dos determinismos e determinações? Também constituem “poderes”? Podem o quê?
Textos do Felipe Corrêa sobre poder (popular).
Citar os Caps. 14 e 15 como tentativa de canalizar potências/poderes de maneira não-autoritária, tentando resolver o problema da tirania em organizações com e sem estrutura18
Poder em Foucault:
- Poder no “Vocabulário de Foucault”, Castro (2009) págs. 323-334, incluindo:
Poder como condução de condutas, Castro (2009) págs. 326-327:
A pergunta de Foucault não é o que é o poder, mas como ele funciona. Desde as extremidades, desde um ponto de vista positivo e reticular sobre o poder, haverá que se perguntar:
que sistemas de diferenciação permitem que uns atuem sobre outros (diferenças jurídicas, tradicionais, econômicas, competências cognitivas, etc.);
que objetivos se perseguem (manter um privilégio, acumular riquezas, exercer uma profissão);
que modalidades instrumentais se utilizam (as palavras, o dinheiro, a vigilância, os registros);
que formas de institucionalização estão implicadas (os costumes, as estruturas jurídicas, os regulamentos, as hierarquias, a burocracia);
que tipo de racionalidade está em jogo (tecnológica, econômica) (DE4, 239-240). Cada uma dessas instâncias quer descrever e analisar “modos de ação que não atuam direta e imediatamente sobre os outros, mas sobre suas ações” (DE4, 236).
O poder consiste, em termos gerais, em conduzir condutas e dispor de sua probabilidade, induzindo-as, afastando-as, facilitando-as, dificultando-as, limitando-as, impedindo-as.
[…]
“O poder, no fundo, é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários ou do compromisso de um frente ao outro do que da ordem do governo’ […] O modo de relação próprio do poder não há que ser buscado, então, do lado da violência e da luta nem do lado do contrato ou do nexo voluntário (que, no máximo, só podem ser instrumentos), mas do lado deste modo de ação singular, nem guerreiro nem jurídico, que é o governo” (D84, 237).
[…]
[…] para Foucault o poder não é uma substância ou uma qualidade, algo que se possui ou se tem; é, antes, uma forma de relação. Para determinar a especificidade das relações de poder, Foucault as distingue das “capacidades objetivas” e das “relações de comunicação”. Por capacidades objetivas, devemos entender: “O [poder] que se exerce sobre as coisas, e que dá a capacidade de modificá-las, utilizá-las, consumi-las ou destruí-las”. Por “relações de informação, relações que transmitem uma informação através de uma língua, um sistema de signos ou qualquer outro meio simbólico” (DE4, 233).
À diferença destas, as relações de poder são relações entre sujeitos que se definem, como dissemos, como “modos de ação que não atuam direta e imediatamente sobre os outros, mas sobre suas ações” (DE4, 236). As relações de poder exigem que “o outro (aquele sobre quem se exerce) seja reconhecido e mantido até o final como um sujeito de ação, e também que se abra, frente à relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis” (DE4, 236).
Algumas precisões a respeito.
As relações de poder não são nem a manifestação de um consenso nem a renúncia à liberdade. Ainda que possam supô-los.
As relações de poder, ainda que distintas das capacidades e das relações de comunicação, estão entrelaçadas com estas. Quando as capacidades, as relações de comunicação e as relações de poder se ajustam umas às outras segundo fórmulas reflexas e explícitas, encontramos, então, uma disciplina (DE4, 235).
As relações de poder são um conjunto de ações que têm por objeto outras ações possíveis, operam sobre um campo de possibilidades: induzem, separam, facilitam, dificultam, estendem, limitam, impedem (DE4, 237).
Segundo Foucault, o termo que permite captar melhor a especificidade das relações de poder é o termo “conduta”: “O exercício do poder consiste em conduzir condutas e dispor a probabilidade” (DE4, 237). Este é o sentido originário do conceito de “governo”, dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos.
O poder se exerce apenas sobre sujeitos livres, ou seja, sujeitos que dispõem de um campo de várias condutas possíveis. Quando as determinações estão saturadas, não há relações de poder. “O poder não se exerce senão sobre”sujeitos livres” na medida em que eles são “livres”.
- “O poder, como se exerce?”, em Foucault (2013) págs. 128-140,
originalmente em “How is Power Exercised”, de “The Subject and Power”,
Foucault, Dreyfus, e Rabinow (1983) e em “Le pouvoir, comment s’exerce-t-il?”, de “Le sujet et
le pouvoir”, Foucault (1994) págs. 232-243, incluindo:
Distinção de “relações de violência” das “relações de poder”, que acaba por recair na distinção entre os termos focaultianos “capacidade objetiva” e “poder”, os quais aqui chamamos de “poder objetivo” (que se aplica em corpos entendidos como “objetos”, isto é, passivos) e “poder social” (que admite sujeitos que podem reagir ao poder com outros poderes)19.
Termo “conduta” usado para apoiar a compreensão das relações de poder. Governo equanto “condução de condutas”. Interessante que o termo “conduta” já parece ter um acepção de condução, de conduto, condutor etc. Condução de conduta então é uma conduta em si, a condução de governar outros corpos.
- Poder no texto “Genealogia e Poder”, Foucault (1988) págs. 174-177:
- Duas abordagens onde o poder é usualmente pensado:
Abordagem economicista: poder entendido analogamente à circulação dos bens (“contrato-opressão”, opsição entre “legítimo” e “ilegítimo).
Abordagem bélica (“guerra-repressão”, oposição entre luta e submissão):
Poder enquanto essencialmente repressivo (“Hipótese de Reich”).
“A base das relações de poder seria o confronto belicoso das forças” (“Hipótese de Nietzsche”).
- Duas abordagens onde o poder é usualmente pensado:
- Poder no “Vocabulário de Foucault”, Castro (2009) págs. 323-334, incluindo:
Diagramas de poder:
Auto-projeção:
.--<-. / \ ---- \ ação projetiva | | / | eu | ->-´ |____|
“Retro-ação”: ações em resposta a ações anteriores.
Adicionar referências, e talvez uma nota mais explicativa, sobre voz média.
Bibliografia
In “Power: A New Social Analysis”, Russell (2004) pág. 4: the fundamental concept in social science is Power, in the same sense in which Energy is the fundamental concept in physics. Like energy, power has many forms, such as wealth, armaments, civil authority, influence on opinion. No one of these can be regarded as subordinate to any other, and there is no one form from which the others are derivative. The attempt to treat one form of power, say wealth, in isolation, can only be partially successful, just as the study of one form of energy will be defective at certain points, unless other forms are taken into account.↩︎
Sobre a diferença aqui usada entre noção e definição, assim como a diferenciação entre palavra e conceito, consultar o capítulo sobre “(In)definições” no volume sobre metodologia, Rhatto (2024d).↩︎
Em Foucault (1988) pág. 179 é colocada a importância de “discernir os mecanismos existentes entre dois pontos de referência, dois limites: por um lado, as regras do direito que delimitam formalmente o poder e, por outro, os efeitos de verdade que este poder produz, transmite e que por sua vez reproduzem−no. Um triângulo, portanto: poder, direito e verdade”.↩︎
Em Foucault (1988) pág. 186 há um resumo de cinco precauções metodológicas: _“em vez de orientar a pesquisa sobre o poder no sentido do edifício jurídico da soberania, dos aparelhos de Estado e das ideologias que o acompanham, deve−se orientá−la para a dominação, os operadores materiais, as formas de sujeição, os usos e as conexões da sujeição pelos sistemas locais e os dispositivos estratégicos. E preciso estudar o poder colocando−se fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição estatal. E preciso estudá−lo a partir das técnicas e táticas de dominação. Esta é, grosso modo, a linha metodológica a ser seguida e que procurei seguir nas várias pesquisas que fizemos nos últimos anos a propósito do poder psiquiátrico, da sexualidade infantil, dos sistemas políticos, etc_”.↩︎
Nem somente Foucault, nem somente Chomsky, mas sim o diálogo entre ambos é que nos apóia na busca pelo bem viver: em 1971, Foucault e o linguista e ativista Noam Chomsky debateram acerca da existência ou não de uma “natureza humana” comum e universal. Uma das polarizações da discussão foi a respeito dos problemas tanto de apenas buscar desmontar criticamente as instituições existentes ou de apenas procurar novas formas de organização. Para a gravação em vídeo de parte do debate, conferir N. Chomsky et al. (2013). Uma mixagem desse debate está disponível em Garcia (2013). Uma versão em livro dessa conversa, editada, revisada e expandida, está em N. Chomsky et al. (2006). Também há uma transcrição, possivelmente na íntegra e mais próxima da conversa original, disponibilizada em N. Chomsky, Foucault, e Elders ([s.d.]).↩︎
Foucault (2013) págs. 128-129; originalmente em Foucault, Dreyfus, e Rabinow (1983) págs. 216-217 e em Foucault (1994) págs. 232-233.↩︎
Verbete “Poder Social” no Dicionário de Política de Norberto Bobbio (2004) pág. 933.↩︎
Entenderíamos assim poder no sentindo tal, qual é dado em língua portuguesa dentre outras de influência latina, à palavra pode: alguém teria poder quando pode fazer, realizando o poder quando faz. Esse entendimento não há equivalente no inglês.↩︎
Em Foucault (2013) págs. 129-130; originalmente em Foucault, Dreyfus, e Rabinow (1983) págs. 217-219 e em Foucault (1994) págs. 233-235↩︎
Vide o verbete “Controle” do Vocabulário de Foucault, em Castro (2009) págs. 85-86.↩︎
Vide (focault2013b?) págs. 132-133.↩︎